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VALE TUDO - A MELHOR NOVELA DA HISTÓRIA

Posted by Clenio on 16:25 in

Imagine uma novela das oito que falasse, ainda que sutilmente,e em níveis variados, de prostituição masculina, alcoolismo, lesbianismo, corrupção. Imagine uma vilã que fosse capaz de deixar a própria mãe sem ter onde morar, que roubasse o namorado da melhor amiga, que traísse o marido, tentasse abortar, vendesse o filho recém-nascido, tentasse matar o filho de uma rival e roubasse o marido da única amiga que lhe restou depois de todo esse currículo - entre outros pecadinhos menores mas tão prejudiciais quanto. Imagine uma novela do horário nobre (com toda a família reunida para assistir) que fizesse o país inteiro parar para tentar descobrir o assassino da vilã-mor e quando revelasse seu final, o mesmo fosse coerente e surpreendente. Pense em um elenco de ATORES - e não jovens em busca de glória fácil - recitando um texto forte e vigoroso. E imagine uma obra de televisão que tivesse a ousadia de encerrar sua história com a vitória dos vilões e uma ironia profunda sobre o estado sócio-econômico do país. Imaginou? Não seria muito mais interessante do que "Viver a vida", por exemplo? Pois saiba que esta novela já existiu e foi apresentada há 22 anos (isso mesmo, mais de duas décadas atrás). Se chamava apropriadamente de "Vale tudo" e, a meu ver, é um dos marcos mais importantes (senão O mais importante) da história da teledramaturgia brasileira de todos os tempos.

Escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, "Vale tudo" estreou em maio de 1988, substituindo a anêmica "Mandala", de Dias Gomes, que pretendia causar polêmica com uma releitura de "Édipo rei", de Sófocles, mas causou apenas sono e um pequeno escândalo com o romance entre seus atores principais (a saber, Vera Fischer e Felipe Camargo). Dirigida por Dênis Carvalho, a trama foi escrita quase às pressas quando uma sinopse de Gilberto, passada no mundo da fórmula 1, foi rejeitada pela emissora. Inspirado na trama principal do filme "Alma em suplício" (Mildred Pierce), que deu o Oscar de melhor atriz à Joan Crawford, o autor resolveu então contar uma história de "bem contra o mal" colocando frente-a-frente mãe e filha com personalidades e ideologias bem opostas. Dessa espinha dorsal aparentemente simples, surgia a novela que iria parar o Brasil pelos próximos oito meses.

Para aqueles que não assistiram ou não lembram (se bem que é difícil esquecer), "Vale tudo" começa em Foz do Iguaçu, onde Raquel Acioly (Regina Duarte, quem mais?) trabalha como guia turístico para sustentar a filha única, Maria de Fátima (Glória Pires no trabalho que a consagrou junto a público e crítica), uma jovem de 21 ambiciosa cujo maior sonho é tornar-se modelo. Seu sonho começa a parecer algo tangível quando ela conhece César Ribeiro (Carlos Alberto Riccelli em sua única atuação decente até hoje), que, antigo frequentador assíduo de passarelas e capas de revistas, se encontra em uma encruzilhada na carreira, graças a seu vício em drogas e problemas com a justiça. Influenciada por César, Fátima vende a casa onde mora com a mãe e parte pro Rio de Janeiro com dois objetivos: ser modelo ou arrumar um marido rico. Deseseperada e sem ter onde morar, Raquel também vai pra Cidade Maravilhosa, onde conhece Ivan Meirelles (Antônio Fagundes), um homem bem formado e competente que, devido a conjuntura do país, está desempregado. Os dois se apaixonam mas acabam sendo separados por Fátima, que assim joga Ivan nos braços de Heleninha Roitman (Renata Sorrah, impecável), uma artista plástica alcóolatra que vem a ser irmã da vítima de Fátima em seu caminho ao poder: o jovem empresário Afonso (Cássio Gabus Mendes), filho da poderosa Odete Roitman (Beatriz Segall em atuação antológica). Com a ajuda de Odete, Fátima se casa com Afonso, roubando-o de Solange (Lídia Brondi), sua melhor amiga no Rio. Antes do casamento, no entanto, Raquel descobre as armações da filha e tenta desmascará-la frente à futura sogra (em uma cena que merece figurar para sempre em qualquer antologia sobre televisão no mundo). Vitoriosa, com o poder à sua frente, Fátima parte para Paris com seu marido rico e Raquel, ferida em seus brios, começa uma escalada rumo ao sucesso profissional. De vendedora de sanduíches naturais ela, em um ano, torna-se a proprietária da cadeia de restaurantes Paladar, que passa a fornecer comida até mesmo para os aviões da TCA, empresa aérea de propriedade dos Roitman.

Um ano depois de seu casamento com Afonso, Fátima retorna ao Rio de Janeiro e vai morar com o marido na mansão da tia deste, Celina (Nathalia Thimberg). Desnecessário dizer que, neste meio tempo, ela nunca abandonou seu caso extra-conjugal com César, seu cúmplice em todas suas falcatruas. Seu objetivo depois do casamento passou a ficar com o marido por dois anos (o que lhe garantiria um bom dinheiro após a separação) ou engravidar dele. A primeira opção mostra-se inútil quando ela é flagrada nos braços do amante e a segunda torna-se um pesadelo quando, depois de nascido, se descobre, graças a um teste de DNA (então raro no país), que o pai do bebê é César. Mesmo escorraçada de casa, Fátima ainda consegue vender o filho para um casal estrangeiro (Raquel salva a criança na última hora) e é acolhida apenas por Leila (Cássia Kiss), que a hospeda em sua casa para descobrir, pouco depois, que sua convidada a está traindo com seu marido, o presidente da TCA Marco Aurélio (Reginaldo Faria). Seu inferno astral parece não ter fim, principalmente quando ela descobre que César está tendo um romance com a poderosa Odete Roitman, que morre assassinada logo a seguir. Mesmo sendo claramente inocente do crime, Fátima é acusada do homicídio e não tem como se defender sem implicar Ivan (novamente envolvido com Raquel) em um tenebroso caso de corrupção. Pela primeira vez fazendo uma boa ação, ela só pode ser salva pelas pessoas que mais prejudicou em sua vida.


O final da novela não poderia ser mais acertado. Raquel confessa o assassinato de Odete e para não ver a mulher que ama presa, Ivan assume sua corrupção, sendo condenado a um ano de prisão (aliás, todos os que são castigados com a cadeia no final são bandidos pequenos, de empregadas domésticas a assessores pessoais). Marco Aurélio acaba sendo acusado do crime por ter fugido do país com 12 milhões de dólares roubados da empresa (a assassina era sua esposa, Leila, que matou Odete por engano, pensando tratar-se de Fátima). E Maria de Fátima?? Acaba se casando, apenas no papel, com um príncipe italiano amante de César, uma jogada que lhe rende 5 milhões de dólares.


Se não bastasse sua trama perfeita e personagens memoráveis, "Vale tudo" apresentou, em seu tempo de exibição, atuações que jamais poderão ser superadas em quaisquer níveis (nem mesmo a versão latina da novela chegou aos pés). Qualquer cena com Regina Duarte e Glória Pires é pra se assistir de olhos fascinados (e são cenas que duram, às vezes, mais de dez minutos SEM CORTES). Beatriz Segall, como Odete Roitman marcou seu nome no rol das vilãs mais odiadas da história das novelas. Renata Sorrah tornou-se inesquecível como a bêbada Helenina Roitman, cujos porres são até hoje objeto de culto (os acessos aos vídeos no Youtube estão aí para provar o que eu digo). O casal fictício vivido por Cássio Gabus Mendes e Lídia Brondi tornou-se casal na vida real também (e Lídia fez apenas mais duas novelas para depois aposentar-se precocemente da TV). E o que falar do mordomo cinéfilo vivido por Sérgio Mamberti? Ou da emergente Aldeíde Candeias de Lília Cabral? Ou do fiel amigo Poliana, interpretado por Pedro Paulo Rangel? Saudades do tempo em que uma novela poderia ser considerada uma forma de arte e que o politicamente correto ainda não estragava o prazer de se assistir a uma boa vilã em ação (e Odete Roitman chantageou, envenenou maionese, fez negociatas escusas, separou casais e chegou ao cúmulo de matar o próprio filho e botar a culpa na filha alcóolatra).


Aliás, a distância de 22 anos separando a estreia de "Vale tudo" dos dias de hoje nos possibilita outros prazeres: hoje em dia é impossível ver qualquer personagem fumando em qualquer novela de qualquer horário. Em "Vale tudo" quase todo mundo fumava (e não apenas os vilões. Inclusive eles é que quase nunca apareciam de cigarro em punho...). A maioria absoluta das cenas internas da novela tinha uma iluminação de filme noir (a saber, uma escuridão esfumaçada) e alguns ângulos de câmera eram, na época, inovadores (algumas cenas eram filmadas de cima, outras de lado, outras ainda no nível do chão). E não deixa de ser engraçado assistir a uma novela em que ter um vídeo-cassete era um luxo, aparelhos de CD eram apenas importados, celulares não faziam parte do dia-a-dia nem dos milionários e beber Keep Cooler era o que havia de mais moderno entre a juventude (até mesmo um Danton Mello criança está no elenco da novela, assim como Marcello Novaes em sua primeira aparição na Globo). E mais: até mesmo Adriana Esteves e Daniela Escobar fizeram cenas em "Vale tudo" (como modelos, mudas do primeiro ao último minuto).


E como não falar da trilha sonora? Quantas novelas tiveram o luxo de ter na mesma trilha nacional (em LPS, logicamente, com Antônio Fagundes na capa), Gal Costa, Maria Bethânia, Cazuza, Ivan Lins, Veronica Sabino, Gonzaguinha, Barão Vermelho, João Bosco? E na internacional (com Cássio Gabus e Lídia Brondi na capa) batiam ponto George Michael, Whitney Houston, Rod Stewart, Supertramp, Sade, Charles Aznavour e Tracy Chapman (quem nunca dançou agarradinho ao som de "Baby can I hold you?"). Canções como "Faz parte do meu show" e "Brasil" (ambas compostas por Cazuza) fazem hoje parte do inconsciente coletivo dos brasileiros e boa parcela de responsabilidade disso certamente vem do fato de terem embalado as personagens da novela.

Reassistir a "Vale tudo" foi um prazer pleno. Os oito meses que a novela durou passaram em quatro no meu aparelho de DVD, tamanha a ansiedade de ver o capítulo seguinte (e foram quase todos geniais, em texto, atuações e direção). Não havia crise de criatividade em "Vale tudo": nenhum capítulo era desnecessário, supérfluo ou banal. Foi uma novela que parou um Brasil que estava na euforia de sua primeira eleição para presidente em décadas (eleição que infelizmente colocaria Fernando Collor no poder) e que estava voltando a acreditar que havia uma luz no fim do túnel. Muita gente ainda acreditava que era possível ser honesto aqui, assim como Raquel Acioly. Ela era admirada por sua honestidade. Mas quem, no fundo, nunca torceu, um pouquinho que fosse, pela sensacional Maria de Fátima???

PS - Muitíssimo obrigado aos amigos queridos que me deram de presente de aniversário a possibilidade de rever minha novela preferida!!!

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6 Comments


nunca na historia da tv,veremos outra novela como esta..e meu sonho era poder rever ela de novo..comecei a ver no yiutube,mss infelizmente ta muito complicado..pq falta muitas partes..mas sem duvida..esta novela deixou saudades


EU também quero comprar onde consigo. Vale tudo pelo jeito foi A Novela numa época onde o povo brasileiro realmente queria mudança e ela trouxe varia perguntas como séra que vale a pena ser honesto? e ainda com a música do grande Cazuza e com atores de verdade que não eram exmodelos e nem exbbbs eram simplesmente atores.


Aonde vc conseguiu o dvd? realmente vele tudo foi a novela em um tempo em que as pessoas se perguntavam sera que vale a pena ser honesto? em um tempo que realmente tinhamos atore e não exbbbs e exmodelos com uma trelha sonora inequecivel e a música de abertura era com o grande Cazuza podemos dizes que Vale tudo foi A Novela


À novela Vale Tudo devo boa parte da minha fluência em Português, numa época em que vivia no Brasil durante 8 meses.
É emocionante rever cenas dessa obra no YouTube 22 anos depois e reparar como esta novela era moderna naquele tempo.


Tb sou completamento louco por essa novela.

Aliás, num final de novela tão cretino quanto o de Passione é que realmente reforçamos a tese de que VALE TUDO é "a novela"!!!

Estava de férias e na casa da minha mãe no Rio e lá assistí aos capítulos 67 á 76.

Pronto, já foi o suficiente pra essa trama me atrair novamente.

Moro em Blumenau-SC e não há o canal viva disponível e não poderei assistir o restante.

Amigo, vc não disponibiliza uma cópia da novela pra mim?

Eu compro...

Tenho gravador de dvd, poderia eu mesmo copiar, enfim.

To muito afim de rever Vale Tudo.

Faz assim, te mando o meu email, se vc puder fazer a gentileza de me contactar poderemos achar um modo de copiar a novela.

Grande abraço e parabéns pelo texto.

cristiano.fs@ibest.com.br


Clênio, te ler é um deleite...

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