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NARCISSUS

Posted by Clenio on 22:23 in
Era um Narciso às avessas. Não apenas pela diferença de sexo, mas principalmente porque não via, em si mesma, nada que pudesse lhe encantar, quanto mais aos outros. Desde criança fora deixada de lado em um mundo que privilegiava a beleza física acima de qualquer outro atributo mental ou sentimental. Não que fosse feia. Não o era, ao menos não era dotada de uma feiúra de Quasímodo. Mas também não tinhas as pernas longas e bem torneadas de sua irmã mais velha ou os cabelos brilhantes e sedosos da caçula. Usava aparelho nos dentes, mas não lutava contra a balança. Não tinha seios admiráveis, mas tampouco tinha mais celulite do que a maioria das mulheres de sua idade. Tinha 25 anos de idade e ainda era virgem.

Odiava espelhos, se pudesse viver sem jamais refletir-se neles teria a mais agradável das vidas. Mas era parte de uma família de saudáveis auto-estimas, de mulheres altivas, elegantes, atraentes e como tal, vaidosas e senhoras de si. Não havia um dia em que se enxergasse em um dos vários espelhos espalhados pela casa sem sentir espasmos violentos no estômago. Só encontrava paz em seu quarto, lendo Goethe, Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, Michael Cunningham, Byron e tudo com que pudesse identificar-se. Percebendo a alma desses escritores, separados por idiomas e gerações, ela sentia-se parte do mundo, uma parte um tanto menor, insignificante, mas parte dele. E poderia viver tranquilamente assim, em seu mundo particular, desprovido de espelhos e da busca pela beleza, se não tivesse conhecido o amor.

Foi de repente, como de repente são todas as coisas que mudam as vidas para sempre. Ela estava em uma livraria, decidindo entre Sylvia Plath e Proust quando o viu, olhos fixos e fascinados em uma leitura quase hipnotizada. Ficou tentada a descobrir o que fazia aquele rapaz magro, um tanto pálido e muito emotivo estar a ponto de verter lágrimas em plena tarde de sexta-feira, dentro de um shopping-center. Era "Werther". E o rapaz - não mais de 20 anos, certamente - chorava não mais discretamente, limpando com a manga da camisa as lágrimas que a morte trágica do protagonista lhe haviam despertado. Guardou o exemplar na mesma prateleira de onde havia tirado e saiu em direção à rua. Foi um impulso irrefreável que a fez seguí-lo, chamar-lhe e oferecer-lhe um lenço. Chamava-se Guilherme. E tinha 20 anos. E amava Werther mais do que amava a própria vida. E tinha uma inocência no olhar que arrancou em poucos segundos todas as resistências que ela tinha em se apaixonar.

O segundo encontro foi em um café, ao som de violinos clássicos - se bem que ela não poderia dizer com certeza se eles estavam presentes ou se era apenas ilusão. Falaram de música, literatura, cinema. Trocaram impressões sobre um mundo ao qual não pareciam pertencer. Choraram as mágoas em relação a suas vidas, seus corpos, seus medos. Discutiram religião, descobriram que gostavam de Chico Buarque. E no fim da tarde roçaram, de leve, as mãos no rosto do outro.

Em uma tarde de agosto, ela aceitou o convite dele de visitar seu apartamento. Ele vivia sozinho, cercado apenas de livros, discos de vinil e fotografias da infância. Ela lembrou que não havia fotografias em seu redor. Sua imagem não lhe agradava e ela não queria lembrar-se dela. Ele sorriu, disse que as fotografias estavam ali porque ele gostava de lembrar-se de um tempo em que era feliz e beijou-a longamente. Ela rendeu-se ao beijo, e sua alma sentiu-se mais beijada do que seus lábios. Quando ele penetrou-a, docemente como ela sonhava em seus delírios românticos, era Schubert que estava tocando. Ou talvez fosse apenas uma ilusão de sua cabeça.

Ela só percebeu a tatuagem dele algumas horas depois, quando estava recostada em seu peito, ouvindo-o ler, com sua voz calma e pausada, trechos de Milan Kundera. Era um coração trespassado por arames farpados. Em um ex-presidiário soaria aterrorizante. Nele, pareceu extremamente romântico e melancólico. Quando ele parou de ler, olhou-a profundamente e declarou-se apaixonado. Elogiou a cor e o formato de seus olhos, a tonalidade de porcelana de sua pele, o perfume de seus cabelos. Acariciou longamente seus seios, beijou-a sofregamente e disse que queria casar-se com ela. E pediu para vê-la sorrindo.

Ela chegou em casa como se tivesse descido de uma nuvem. Uma chuva intermitente lhe havia molhado os cabelos e ela sentia-se, pela primeira vez na vida, uma mulher. Melhor ainda, uma pessoa, alguém que era amada. E sim, que amava. Pela primeira vez. Pela única vez. Amava e era amada. Era uma sensação indescritível. Tomou um demorado banho de chuveiro, gostando do próprio corpo pela primeira vez. Ao secar os cabelos - depois de cheirá-los para tentar guardar em suas narinas o mesmo cheiro que havia encantado o amor de sua vida - vislumbrou-se no espelho. Ali estava. A mesma mulher de antes. Estava feliz, sim, mas era o mesmo rosto, o mesmo olhar, a mesma testa. Sorriu. E seu sorriso de felicidade era tão grotesco que ela não tolerou encará-lo por muito tempo. Foi até a cozinha, de pés descalços e roupão. Abaixou-se junto à pia e fez o que tinha certeza que deveria ser feito. Espirrou desinfetante nos olhos.

Urrava de dor quando foi posta na ambulância. Mas estava feliz. Era amada. Amava. Mas não precisava ver a face de sua felicidade nunca mais.

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2 Comments


Clênio, você acorda sempre inspirado desse jeito?! Ficam aqui os meus parabéns pelo belo post, amigo. Abraço forte! :)


Que desinfetante era esse? Ficou cega para sempre?
Que louca!!

Bjs!

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