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AZUL É A COR MAIS QUENTE

Posted by Clenio on 18:24 in
Nada como uma boa polêmica (ou mais de uma) para que um filme como "Azul é a cor mais quente" - que de outra forma teria sua audiência restrita a fãs de festivais de cinema e ao público alternativo de cinema de temática gay - consiga atingir o espectador médio. Vencedora da Palma de Ouro de Melhor Filme no Festival de Cannes de 2013 - que pela primeira vez premiou, além do diretor, suas duas atrizes centrais - a obra de Abdellatif Kechiche provocou controvérsias que, de certa forma, eclipsaram suas inúmeras qualidades. Desde a forma como Kechiche tratou suas estrelas - de forma cruel e exaustiva, segundo as próprias - até as longas sequências de sexo - bastante gráficas e muito mais ousadas do que o que normalmente se vê no cinema mainstream, mas muito longe de ser pornográficasMesc - tudo serviu para que até o mais desinformado frequentador das salas de exibição tivesse a curiosidade aguçada. Com esse marketing involuntário, o filme corre o sério risco de ser mais lembrado por suas cenas eróticas do que por sua história, forte e realista. É preciso, então, separar o joio do trigo.

Logicamente muito do público que correr aos cinemas irá fazê-lo para conferir o embate carnal entre as duas atrizes, Léa Seydoux e Adéle Exarchpoulos - cuja personagem tem seu mesmo nome para conferir mais realismo às cenas, muitas delas registradas quando a atriz estava fora de cena. Quantas pessoas desse público, porém, terão a sensibilidade suficiente para, por trás disso, enxergar o que realmente importa no roteiro, baseado no romance gráfico de Julie Maroh? "Azul é a cor mais quente" é muito mais do que a história de uma adolescente descobrindo o amor e a homossexualidade. É a história de uma mulher despertando para a vida, buscando desesperadamente um ponto de apoio sentimental e o lugar adequado para colocar o desejo. Ao contrário do apregoado pelos detratores, as cenas de sexo não são gratuitas e apelativas: elas servem perfeitamente à trama, estabelecendo desde o princípio a base carnal, passional e telúrica do relacionamento entre as duas jovens.

O título original do filme - "A vida de Adèle, capítulos 1 e 2" - deixa clara a intenção do diretor em contar, de forma simples e direta, episódios específicos da vida de sua protagonista, como se fosse parte de um diário. É compreensível, então, sua opção em realizar quase dois filmes em um: a primeira metade acompanha as descobertas da adolescente Adèle, que, encantada pela inteligência e charme de Emma (Seydoux) - uma estudante de Belas Artes dona de um estiloso cabelo azul - se envolve em um relacionamento que lhe proporciona calor e prazer, ao mesmo tempo em que a insere em um mundo muito distante do seu. O romance entre as duas dá um salto na segunda metade, quando, morando juntas, elas enfrentam os problemas da rotina e a decadência do desejo. Trabalhando como professora primária, Adèle sente-se deslocada entre os amigos artistas de Emma, o que acaba resultando em uma crise quase incontornável.

Mesclando suas cenas românticas com longos discursos sobre arte e filosofia - nunca forçados ou exageradamente eruditos - Kechiche conta sua história sem pressa, concentrando-se na fisionomia de Adèle Exarchpoulos para transmitir todas as sensações que pretende. A jovem atriz, por sua vez, não deixa a desejar, entregando um desempenho corajoso e cru que justifica seu prêmio em Cannes - assim como Lea Seydoux, que transmuta sua doce e sedutora Emma da primeira fase em uma mulher pragmática e madura na segunda sem precisar utilizar mais do que seu talento. A opção do diretor em ignorar momentos que poderiam ser cruciais - a saída do armário de Adèle ou a maneira com que ela revida à indiferença da parceira - fazem do filme algo ainda mais especial, por respeitar a inteligência da plateia, fugindo do lugar-comum que faria de sua obra apenas mais um produto a explorar a temática homossexual. A crueza de sua filmagem - em contraponto à delicadeza dos sentimentos expostos pelas personagens - é provavelmente o ponto alto de um filme que, mais do que controverso, é dolorosamente real.

"Azul é a cor mais quente" se presta a diversas discussões - a respeito de sua estrutura, sobre os atos das personagens (que agem como pessoas normais e não arquétipos baratos), sobre a ousadia de suas cenas de sexo, sobre o retrato do mundo gay. Mas, acima de tudo, é cinema vivo. Chacoalha, emociona e quase incomoda. Há quanto tempo um filme não faz isso?

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