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SÓ DE FOLHEAR UM ÁLBUM DE FOTOGRAFIAS...

Posted by Clenio on 20:00 in
Folhear um antigo álbum de fotografias - aos jovens não familiarizados com o termo em seu uso arcaico, antes do advento das câmeras digitais e da transmutação em páginas nas redes sociais as mais variadas, eu me refiro especificamente a um livro onde as fotos ficavam protegidas por um papel autocolante e guardadas cuidadosamente em um armário fora do alcance das crianças - é, mais do uma viagem no tempo (perdoem o clichê), um choque. Um choque porque, através dessas imagens, muitas vezes esmaecidas ou fora de foco, estão personagens que, devido à atividade cruel do tempo, foram extraídos da novela de nossas vidas. São personagens que, independente de sua importância à época em que participavam dos nossos dramas e comédias, saíram de cena, muitas vezes para sempre. Uns fizeram a transição rumo ao escaninho da memória da mesma maneira discreta com que desempenharam seus papéis, outros deram adeus carregados do pathos que sempre lhes foi característico. Alguns - que pareciam fadados a uma amizade eterna e pétrea - simplesmente desapareceram como se tivessem cumprido sua missão e dado o assunto por encerrado. Outros - que estavam nas fotografias como figurantes, bem ao fundo - assumiram a protagonização de algumas temporadas e se mantiveram em evidência contrariando as expectativas com seu bom-caráter e lealdade. Há também aqueles que, assim como aqueles atores que voltam depois de anos às séries que lhe deram fama, ressurgem e reafirmam os laços de amizade - muitas vezes com ainda mais força do que antes - e aqueles que foram, juntamente com o arcanjo da Beatriz cantada por Chico Buarque, obrigados a passar o chapéu ao final da sessão muito antes do que deveriam.

E assim, como uma viagem sensorial - porque nela estão presentes cheiros, texturas e tons de voz - o ato de folhear um álbum de fotografias traz de volta os colegas de jardim de infância (e a professora apavorada porque um louco inventou ter plantado uma bomba na escola). Traz de volta a conversa durante o recreio em que um colega declarou-se seu melhor amigo (o mesmo melhor amigo que você nunca mais viu e de quem nunca mais teve notícia). Traz de volta o gosto de café com leite da garrafa térmica que você levava pro lanche. Traz de volta a brincadeira de "Flash Gordon" na rede e as conversas solitárias no alto de uma árvore derrubada para a construção de um prédio do governo (José Mauro de Vasconcellos lhe entenderia). As fotos lembram das festas juninas com os amigos e colegas de infância que desapareceram na névoa do tempo e os Natais festivos com a quantidade enorme de primos que se espalharam e só se encontram no Facebook. Também faz lembrar do amigo que era fã do personagem do Mário Gomes em "Guerra dos sexos" e encontrou a morte com dez anos de idade em um acidente de caminhão - em plenas férias de verão, o que o privou de uma despedida que, tão cedo na vida, poderia ter lhe marcado profundamente.

As fotos antigas - não tão antigas quanto aquelas que mostram tudo em um preto-e-branco real e não de filtro do Instagram, mas mesmo assim antigas o bastante pra dar aquela dorzinha no peito - o fazem lembrar que, por um período de tempo (longo ou curto, mas suficiente para marcar) você teve contato com pessoas com quem você adorava trocar ideias, com quem você ria até ficar sem fôlego, com quem você desabafava suas dores e pra quem você ofereceu o ombro em momentos de crise... e que depois simplesmente evaporaram, como em um passe de mágica. Lembram também de noites inesquecíveis à luz da lua, ao som da conversa barulhenta dos boêmios e da certeza absoluta de que todos eram imortais, jovens e invencíveis - com um copo de cerveja na mão e a trilha de "Trainspotting" nos ouvidos. A morte, a desesperança e o cinismo chegaram e levaram (quase) tudo embora. Dessas fotos ainda resta a amizade, mas à distância, essa cruel e insensível vilã que nem mesmo Gilberto Braga em seu auge conseguiria criar.

E o que dizer de uma foto em grupo, tirada em uma festa, com todos sorrindo, ébrios e predispostos à toda felicidade que o mundo puder oferecer? Uma foto em festa não é apenas o registro de um momento de alegria efêmera: é o registro de um tempo, de um lugar, de uma atmosfera, de uma dinâmica social... em tese, um "who's who" da galera. Nessa foto, aparentemente banal, está a síntese ilustrada da modernidade líquida de que falava Bauman: pessoas que hoje nos são caras e importantes e que, poucos anos depois, nos são, no mínimo, indiferentes. Diga-me rapidamente: quais desses casais ainda estão juntos? Quem ainda é amigo de quem? Quem ainda está vivo, diante de tanta violência e vírus malditos que surgem a cada dia? Quem ainda é seu amigo? E, por falar nisso, você ainda gosta da música que sempre tocava quando você frequentava esse lugar que é o cenário da foto? Ah, você nunca mais voltou lá... Mas lembra de cada risada que deu, cada lágrima que derramou, cada porre que tomou. Tudo isso veio por causa de uma foto, quem diria.

Folhear um álbum de retratos é, sem dúvida, um teste à emoção, hoje substituído pela tecnologia de  ver tudo digitalizado na tela de um computador ou de um celular. Mas essa nostalgia toda apenas serve para confirmar a teoria da seleção natural de Darwin: por mais que sintamos saudade de um tempo e de pessoas que foram importantes, são aquelas que permaneceram em nossas vidas apesar de tudo que realmente importam. Mesmo de longe. O tempo passa, é inevitável. Mas a amizade verdadeira, o carinho, a preocupação, são eternas. As pessoas que passaram são como mensageiros das peças de Shakespeare: entram em cena, dão seu recado e se despedem. Os atores centrais permanecem, independente do papel que representam em cada espetáculo. O importante é saber que outras fotos virão e, junto com elas, gente que pode ou não conquistar um papel fixo na sua novela, ao lado daqueles que você ama. O álbum do Facebook ou o Instagram vai estar sempre se renovando, mas o elenco fixo só é definido por você.

Esse post é dedicado ao meu elenco fixo, que eu amo como poucas coisas na vida:Paulinho, Márcia, Cândida, Bruna, Fernanda, Bia, Kátia, Cris e Eleonora. E como lembrança daqueles de quem sinto uma puta falta - por motivos diferentes: Paula e Fabiano.

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1 Comments


Me sinto honrado de fazer parte do post. E, além disso, de saber com detalhes cada passagem que foi timidamente colocada nessas linhas. Algumas então... que poucos entenderiam ser uma passagem de fato. Obrigado por partilhar isso comigo, em meio a "Tá, então, se você acha isso...", uns "Mas é você que está achando..." e outras "Ahh, então sou eu que estou achando? É isso? Sempre isso?".

Zukm.t
e se lembre daquilo que te disse sobre as temporadas. por mais absurdo e volátil que pareça/seja o mundo, algumas coisas não são assim, não se nós não quisermos.

bjooo

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