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EM PROL DA FAMÍLIA TRADICIONAL BRASILEIRA

Posted by Clenio on 19:41 in
- Crise urgente, senhor diretor!
- Nâo temos tempo para crises urgentes, Zé! O máximo com que podemos lidar até sexta-feira são mini-crises. Essa é uma mini-crise?
- Eu diria uma maxi-crise, senhor! Felícia diz que não irá estrear a menos que o final da peça seja reescrito!
- A Felícia quer reescrever o final de uma peça de Shakespeare? Zé, você tinha me jurado que ela tinha abandonado as drogas.
- Juro pela minha mãe, senhor diretor. Mas ela acaba de me dizer, com essas mesmas palavras, que não irá subir ao palco na sexta-feira a menos que o final seja reescrito.
- Essa louca quer alterar o desfecho de "Otelo"? De que forma, se é que eu posso perguntar sem parecer um esquizofrênico.
- Ela disse que a morte de Desdêmona é um incentivo à violência contra a mulher, e que não pode compactuar com uma afronta dessa dimensão aos seus próprios ideais.
- Essa anta não sabia da história antes de assinar o contrato? Ela nunca havia lido Shakespeare na vida?
- Segundo ela, Shakespeare foi o segundo autor mais misógino da história do teatro mundial, ficando atrás apenas de Eurípides.
- Eurípides?
- Ela continuamente se questiona se o fato de Medeia ter assassinado os filhos não é apenas uma representação arcaica da culpa que os homens sempre depositam nas mulheres quando um relacionamento acaba. Segundo ela, Eurípides deveria ter feito Medeia deixar as crianças com o pai e iniciado uma bem-sucedida carreira profissional.
- Essa Felicia é meio louca, não é?
- Se me permite um aparte, senhor... não é completamente sã da cabeça, não. E está em vias de iniciar a produção de uma versão lésbica de "Quem tem medo de Virginia Woolf?".
- E como seria uma versão lésbica de "Quem tem medo de Virginia Woolf?"? Quatro sapatões jogando uisquinho na parede enquanto ouvem Angela Roro?
- Não me pergunte, senhor. Mas o fato é que ela se recusa a interpretar Desdêmona com o final original.
- E o contrato dessa infeliz permite essa insubordinação?
- Não há contrato. Teatro cooperativo tem desses problemas.
- Por que eu não ouvi a minha mãe quando ela me mandou fazer concurso pro Banco do Brasil? Por que essa minha mania de ser artista no Brasil??
- E além da Felícia, temos outro problema.
- Mesmo? Qual? O ator que faz o Iago acha que o papel vai atrapalhar os planos dele de ir pra Globo porque vai manchar a imagem?
- Antes fosse... O Agenor....
- Não me diga que o Agenor também está em crise ética?
- Ele faz parte de uma Associação de Afrodescendentes Conta a Discriminação Nas Artes Cênicas Internacionais e eles também não estão satisfeitos com o texto da peça.
- Então manda ele entrar numa máquina do tempo e ir falar diretamente com um tal de William Shakespeare. Billy, pros íntimos.
- Ele não tem problemas, mas a Associação está ameaçando o coitado de expulsão se ele estrear na sexta. Motivo: eles dizem que o fato do Otelo assassinar Desdêmona no final do espetáculo apenas - e aqui leio exatamente as palavras escritas no manifesto enviado aos jornais de hoje - "reitera o estereótipo odioso e preconceituoso contra os negros que vem envenenando a sociedade como um todo desde tempos imemoriais."
- Eles estão falando sério?
- Eles entraram com uma ação na justiça querendo mudar o nome da lenda do Negrinho do Pastoreio para "O afrodescescendentezinho do Pastoreio". Acho que não estão para brincadeira.
- E o que eles propõem? Que o Iago acabe matando Otelo e Desdêmona se transforme em uma feminista?
- Na verdade ela não gosta do termo "feminista" porque julga que isso é limitatório e pejorativo. Inclusive considera qualquer menção à palavra "mulher" na arte uma forma de agressão silenciosa.
- O que eu vou fazer, Zé? Como é que vou estrear uma peça em dois dias com tanto problema em cima de mim?
- E já que o senhor mencionou o ator que interpreta Iago...
- O que foi? Também está tendo ataques de estrelismo? Não quer mais que o Iago seja invejoso?
- Ele está com o firme propósito de interpretar Iago como um homossexual rejeitado. Segundo ele, fez pesquisas exaustivas para atingir o tom ideal assistindo à TV Senado. E quer substituir seu último monólogo com uma versão acústica de "Vingativa", das Frenéticas. Ele diz que isso daria ao espetáculo um tom pós-moderno.
- Ótimo! Perfeito! Então tenho em mãos uma Desdêmona feminista que não quer morrer, um Otelo ativista pelos direitos negros que não quer matar e um Iago bichona que quer acabar a peça cantando Frenéticas. Minha carreira está decididamente arruinada! Sabe o que eu faço nesse momento? Eu me demito! Vou dar aulas de teatro para crianças. Nunca mais quero saber de dirigir atores metidos a estrelinhas panfletárias!!!!

ALGUM TEMPO DEPOIS...

- Que bom te rever, Zé! Depois de tanto tempo e tantas mudanças...
- Pois é, agora não sou mais assistente de diretor. Assumi a direção daquela montagem de "Otelo" que parecia desastrosa e agora sou o mais novo queridinho dos palcos. Até matéria na "Zero Hora" consegui. Capa da "Donna", veja só...
- "O diretor que mudou a forma de fazer teatro no Brasil". Meus parabéns! Você conseguiu mudar até Nelson Rodrigues...
- Sabe como é, tinha muita violência e permissividade na obra do anjo pornográfico. Não era apropriado pra família brasileira.
- Você tirou qualquer menção a estupro em "Barrela", do Plínio Marcos...
- Estupro não é uma coisa agradável, meu amigo. Pra que ficar falando dessas coisas pesadas no teatro??
- Tem razão. Por isso estou fazendo teatro infantil. Nada para desagradar à família brasileira.
- Mais ou menos, meu amigo. Estou aqui a pedido de uma amiga que não está nada feliz com a sua montagem de "Pluft, o fantasminha"...
- Como assim? Estou seguindo à risca o texto. Não está feliz com o que?
- Essa minha amiga é presidente da Associação Espírita do estado e eles acham que a maneira com que a doutrina espírita está sendo representada na peça é propensa a distorções e achincalhe por parte do público-alvo.
- O público-alvo são crianças!
- Exatamente. Mentes facilmente manipuláveis! Vai que, ao assistir à sua peça, resolvam achar que espíritos ficam por aí com medo das pessoas e passem a fazer sessões espírias com o único objetivo de assustar as almas desencarnadas?? Crianças não são confiáveis, senhor diretor.
- Minha peça, Zé? MINHA? Minha Santa Maria Clara Machado, me ajude.
- Santos não irão lhe ajudar, agora, meu amigo. A Associação pede alterações imediatas no texto ou a estreia será cancelada...
- Você quer acabar com a minha carreira, não é isso?
- Não sou eu quem pede isso, meu caro amigo. É a sociedade que não suporta mais compactuar com tanta sujeira. A família tradicional brasileira não aguenta mais ser bombardeada com tanta iniquidade!
- Você mudou o roteiro da "`Paixão de Cristo" em Nova Jerusalém!
- Muita violência, muita violência... O futuro do teatro, da música, do cinema, das artes em geral... está em retratar as coisas belas da vida. O amor, a paz, a fraternidade...
- Você quer dizer que vamos acabar fazendo versões para o palco de "Chapeuzinho vermelho"?
- Depende! Só se no final o lobo mau sair vivo. Pega mal matar animais. Dá mau exemplo. As associações de defesa dos animais irão intervir...
- Mas, Zé...
- Tudo em nome da família tradicional brasileira, meu amigo. Ela merece essa consideração!!

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3 Comments


AMEEEEEI o Iago bichona e ri alto em várias partes. Devias reunir esses textos e tentar publicá-los.

Zukm.t
ppb
bjoooooooooooo


Seu Blog é FANTÁSTICO!
Eu adorei o conteúdo fictício aqui{nestas frases construídas com pitadas de humor}!!!

Um Abraço.


Amei o seu texto e o seu blog,conteúdo interessante por aqui!!!
Um Abraço!!!

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