1

ELIS REGINA - NADA SERÁ COMO ANTES

Posted by Clenio on 17:55 in ,
Insegura e autoconfiante. Diminuta em tamanho e gigante na voz. Agressiva e dócil ao sabor do vento. Estrábica, mas capaz de enxergar a dimensão do talento de nomes desconhecidos. Amiga leal e opositora feroz. Calorosa, mas perfeitamente apta a riscar de sua vida os desafetos. Generosa quando menos se esperava e defensora violenta de seu lugar ao sol. Uma mulher de extremos, que ia do amor ao ódio, do cancioneiro mais popular às mais sofisticadas armadilhas do jazz, que defendia ferrenhamente os direitos dos músicos e bateu de frente, em ocasiões distintas, tanto com a ditadura militar que via nela uma inimiga a combater quanto com os militantes de esquerda que a consideravam aliada da repressão. Muitas contradições em uma única e liliputiana figura, Elis Regina Carvalho Costa, gaúcha de Porto Alegre e brasileira por adoração, não tornou-se a maior cantora da história do país à toa. Mais de três décadas depois de sua morte - inesperada, estúpida, ainda não completamente digerida por gerações de fãs - a mulher de temperamento forte e apelido "Pimentinha" ainda arrebata os ouvintes com sua voz límpida e rascante e serve de influência e referência a qualquer cantora que tenha surgido após sua assombrosa interpretação de "Arrastão" no Festival de Música da Excelsior de 1965, um divisor de águas na história da MPB - hoje em melancólica e corajosa sobrevida graças aos esforços de alguns poucos grandes nomes que tentam respirar debaixo de uma tsunami de pagode, funk e sertanejo dos mais variados tipos. Dona de uma história que ilustra como poucas o desenvolvimento da cultura musical brasileira dos anos pós-Bossa Nova - uma história que se cruza com a truculência da ditadura, a batalha contra a americanização do som puramente nacional e o surgimento e consagração de nomes como Milton Nascimento, Ivan Lins e João Bosco (dentre tantos outros) - Elis merecia uma biografia à sua altura. Publicada em 1984, dois anos depois de sua morte (e por consequência ainda sem o distanciamento imprescindível a uma obra mais neutra e menos passional) "Furacão Elis", de Regina Echeverria, supriu a necessidade urgente de uma homenagem, mas é "Elis Regina - Nada será como antes", do jornalista Julio Maria (Editora Master Books) que deverá permanecer como a obra definitiva sobre a mulher cuja voz só não conquistou o mundo inteiro por mero acaso (e talvez falta de tempo).

Sem medo de ferir suscetibilidades ou mostrar um lado pouco admirável de uma artista que colecionou tanto fãs ardorosos quanto detratores radicais graças a seu gênio forte - muitas vezes incompreendido mas frequentemente reiterado por ações pouco louváveis - Julio Maria construiu uma biografia detalhista mas nunca aborrecida, que equilibra com raro senso literário a vida pessoal e sentimental de sua protagonista (repleta de paixões avassaladoras e brigas homéricas), sua trajetória profissional (constantemente atrelada a seus anseios de ser a melhor em seu metier) e o inevitável confronto de tais frentes, muitas vezes em uma plácida harmonia mas normalmente carregadas de uma tensão que ela devolvia a seu público em forma de versões definitivas de canções antológicas - quem não se arrepia com sua voz embargada de emoção em "Atrás da porta" deve procurar com urgência um tratamento psicológico - ou álbuns dignos de figurar na lista dos melhores do mundo - caso de "Elis & Tom", gravado em 1974 sob uma pressão psicológica por parte do maestro e com um resultado tão sensacional que por si só já bastaria para elevar Elis ao Olimpo da música internacional. Esclarecendo de vez alguns boatos maldosos que acompanharam a cantora por toda a sua vida - como o pretenso descaso que tinha por suas raízes gaúchas e a ridículo e a inconcebível teoria de que andava de mãos dadas com o governo ditatorial da década de 70 - o jornalista acerta em cheio a não dourar a pílula em outros casos menos favoráveis à sua imagem, sintomaticamente datados do início de sua carreira, quando a insegurança ainda era maior que a experiência e a tornou figura pouco querida nos bastidores de seu "O Fino da Bossa", que apresentava ao lado do amigo Jair Rodrigues (e acreditem, nem mesmo ele escapou das garras de uma ambiciosa e até então pouco diplomática jovem cantora).

Sem esconder a admiração por sua biografada, Julio Maria descreve com saborosos detalhes suas conquistas internacionais, quando botou no bolso, sem muito esforço, plateias de países tão familiarizados com a música nacional quanto com um tamborim: as de Paris - que conquistou aos 23 anos de idade cantando a brasileiríssima "Upa neguinho", de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, e que deveria soar como grego a ouvidos acostumados a Edith Piaf e Ella Fitzgerald - tornaram-se frequentes para seu brilho atrevido, e até mesmo as do bem-comportado Festival de Montreaux, na Suíca, que rendeu-se atônita a suas estripulias vocais, em especial em um encontro inusitado com Hermeto Pascoal que deixou boquiabertos até mesmo seus músicos, acostumados à sua impressionante capacidade de transformar o impossível em algo tão natural quanto beber um copo d'água. Sempre reconhecendo o mérito artístico daqueles que ajudavam Elis a transcender o efeito de cantar, Maria não mede esforços a creditar a César Camargo Mariano (parceiro profissional e conjugal da cantora em seus anos mais férteis e criativos, além de pai de seus dois filhos caçulas, Pedro e Maria Rita) uma importância fundamental no desenvolvimento da Elis artista e a Ronaldo Bôscoli (desafeto tornado marido e pai de seu primogênito, João Marcello) a coragem de transformar um diamante bruto em joia rara, lapidando sua imagem diante do público e da mídia. Não faltam testemunhos do quanto esses dois homens - assim como outros cuja importância se limitava aos bastidores musicais - foram as pedras-de-toque para uma carreira quase irretocável - nem mesmo ela considerava seu "Viva a Brotolândia", de 1961 (uma tentativa malograda de fazer dela uma nova Celly Campello) algo digno de nota, por privá-la de ser o que ela realmente era: uma cantora de música puramente brasileira.

Suas lutas pela valorização do cancioneiro nacional - fato que a contrapôs aos então nascentes movimentos considerados traidores da pureza sonora do país, como a Jovem Guarda e o Tropicalismo, com suas guitarras elétricas e excentricidades visuais - são outro ponto crucial do livro de Julio Maria. Politicamente ativa e de consciência social eternamente a mil, Elis passava como um trator por cima de quem fosse preciso para buscar o reconhecimento devido a compositores, músicos e quaisquer artistas -  e nem mesmo esse histórico louvável a impediu de entrar como ré em um processo movido por colaboradores de "Falso brilhante", um de seus mais memoráveis shows, que borrava de forma até então inédita a linha entre teatro e música e que se transformou em uma espécie de guia para todos os espetáculos da cantora dali em diante, inclusive o ousadamente político "Transversal do tempo", que cutucava com vara curta a decadência social de um país às portas de uma anistia que traria de volta "o irmão do Henfil" que ela citava na até hoje comovente "O bêbado e a equilibrista" - que, sintomaticamente e à sua revelia, seria lembrada informalmente como o hino de um Brasil que aparentava querer riscar de sua história duas décadas de arbitrariedades e violência. Foi uma Elis política quem fez shows beneficentes para levantar fundos para os sindicatos liderados por Lula - muito antes que ele fosse seriamente considerado ao Palácio do Planalto. Foi uma Elis carregada de indignação que desafiou a polícia militar do Recife cobrando a soltura de um seminarista preso e torturado. Foi uma Elis chocada com um preconceito hipócrita que fez escândalo em um hotel que se recusava a hospedar dois de seus músicos, negros como Toni Tornado, com quem dividiu orgulhosamente um palco mesmo sabendo dos riscos de tal atitude diante daquele Brasil que não conhecia - ou fingia não conhecer - o Brasil. E foi uma Elis inesperadamente compassiva que estendeu a mão à Rita Lee quando ela foi presa acusada de porte de drogas em plena gravidez - uma mão estendida que alongou-se à encomenda de uma canção que tirou Rita de um aperto financeiro e deu a Elis um de seus maiores sucessos, "Alô, alô, Marciano". Todas essas facetas de Elis são iluminadas pelas palavras de Julio Maria - assim como aquelas mais prosaicas, domésticas e delicadas que montam o complicado quebra-cabeças que era a idiossincrática personalidade de alguém que passou a vida inteira passando ao largo das mais nocivas tentações de experimentar drogas - inclusive se indispondo com membros da banda que porventura as usassem - e que acabou vitimada por uma overdose acidental de cocaína.

Capaz de despertar desvairadas ou silenciosas paixões - Milton Nascimento, Edu Lobo, Nelson Motta e até, pasmem, Fábio Jr. - Elis Regina viveu como cantava: com entrega, com emoção à flor da pele, com dedicação quase religiosa e com uma convicção que refletia o tamanho não de seu corpo, mas de sua alma. "Nada será como antes" é um título apropriado para uma biografia sua. De 19 janeiro de 1982 pra cá, a música popular brasileira sofre de um vácuo que, a despeito da riqueza que ainda apresenta aos que se dispõem a ouví-la, nunca mais será preenchido. O livro de Julio Maria surge como um consolo paliativo, um afago carinhoso nos fãs da mulher e da artista que, felizmente, deixou um legado ainda hoje capaz de emocionar e fazer vibrar quem gosta de boa música. Por causa dela, realmente nossos ídolos ainda são os mesmos de nossos pais.

|

Copyright © 2009 Lennys' Mind All rights reserved. Theme by Laptop Geek. | Bloggerized by FalconHive. Distribuído por Templates