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AO ANOITECER

Posted by Clenio on 16:15 in
Publicada em 1922, a novela "Morte em Veneza", do alemão Thomas Mann, é hoje considerada um clássico absoluto - fato que o belíssimo filme dirigido por Luchino Visconti em 1971 apenas confirmou. Narrando a obsessão de um escritor de meia-idade (ter cinquenta anos na época era praticamente estar com um pé na cova) por um adolescente esteticamente perfeito, Mann deu voz a um estudo sobre a fugacidade da juventude e a perenidade da beleza como forma de arte. Agora, o americano Michael Cunningham, de certa forma, dá a sua visão sobre o assunto com seu particular estilo de prosa. "Ao anoitecer" (Companhia das Letras) é seu quarto romance a chegar às livrarias brasileiras e aporta cinco anos depois de seu último lançamento - o livro de contos "Dias exemplares" - para, mais uma vez, encantar os leitores com uma história psicologicamente forte e inteligente. E a menção à "Morte em Veneza" não é apenas casual.

Assim como no livro de Thomas Mann é o quase infante Tadzio que inicia o processo obsessivo do protagonista, na obra de Cunningham é o jovem Mizzy (abreviação de mistake - erro) quem deflagra a onda de crise existencial em Peter Harris, o dono quarentão de uma galeria de arte que vê no rapaz de vinte e poucos anos (belo, rebelde e com problemas com drogas) uma espécie de reencarnação de seu irmão homossexual cuja beleza lhe despertou o senso estético e sensações dúbias ainda na pré-adolescência. O problema com Mizzy - além de ser homem, mais jovem e consideravelmente problemático - é o fato de ser o irmão caçula de Rebecca, esposa de Peter. E é o jovem (sensual, inteligente e desprovido de quaisquer convenções sociais rígidas) cunhado quem desencadeará no correto Peter uma onda de lembranças, desejos e dúvidas sobre sua vida, seu trabalho e até mesmo sobre seu casamento.

"Ao anoitecer" não se desvia para o lado homoerótico da atração de Peter por Mizzy, ainda que toque no assunto sem medo. A trama de Cunningham abrange bem mais do que simplesmente o tesão de um homem de 44 anos por um jovem de 21. Harris não se excita apenas pelo corpo de Mizzy e sim pela beleza que representa, pela juventude que exibe, pelos sonhos que ainda possui - e pelo tempo que ainda tem para realizá-los. O livro é uma ode à beleza, uma homenagem às boas memórias, um estudo sobre a avaliação que fazemos de nossas vidas periodicamente. Os personagens do escritor podem transitar por círculos sofisticados de uma Nova York cosmopolita e bem nascida, mas seus sentimentos de saudade e ânsia de viver (ou deixar de) são universais e profundos. Michael Cunningham é um mestre no assunto e é difícil ficar indiferente à sua obra (seja ela este novo livro ou os geniais "As horas" e "Uma casa no fim do mundo").

Talvez seja exagero equiparar "Ao anoitecer" a um livro tão amplamente estabelecido como obra-prima quanto "Morte em Veneza". Mas cada geração tem seu Aschenbach (protagonista da novela de Mann) apropriado e este novo romance caminha para se tornar um pequeno clássico.

"Não, Rebecca, você não quer isso. Você quer continuidade. EU é que quero ser livre. Eu é que faço as coisas indizíveis. (...) Rebecca, você não pode ter essa fantasia. Essa fantasia é minha."

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DOIS FILMES COM RYAN GOSLING - ENTRE SEGREDOS E MENTIRAS/HALF NELSON

Posted by Clenio on 15:16 in
Os filmes menos comerciais do ator canadense Ryan Gosling tem uma má sina no Brasil. Quando são lançados (SE são lançados), sempre é com atraso, como aconteceu com o belo "Namorados para sempre" (que sofreu com o título nacional equivocado) e com "Entre segredos e mentiras" (que estreou nos EUA em dezembro do ano passado e só agora aporta por aqui). Caso pior aconteceu com "Half Nelson", que lhe deu uma indicação ao Oscar em 2006 e nunca passou nas telas brazucas, não tendo sido nem mesmo lançado em DVD. Para assistí-lo, somente com insônia o bastante para cruzar com ele na programação da madrugada da TV a cabo. Um dos atores mais intensos e impressionantes de sua geração, Gosling, às vésperas de completar 31 anos, é provavelmente a melhor promessa com que Hollywood acena aos fãs de cinema desde que Edward Norton surgiu em "As duas faces de um crime", em 1996.


ENTRE SEGREDOS E MENTIRAS - Baseado em um rumoroso caso real ocorrido em Nova York em 1982, o filme de Andrew Jarecki tem nas atuações de Gosling e Kirsten Dunst seu maior trunfo. Ele vive David Marks, filho de um empresário do ramo imobiliário nova-iorquino (Frank Langella) que hesita em seguir os passos do pai. Depois de apaixonar-se e casar-se com a bela Katie (vivida com surpreendente maturidade por Dunst), ele começa a demonstrar traços agressivos e complexos de sua personalidade, chegando até mesmo a agredir a esposa. Quando ela desaparece, ele torna-se o principal suspeito, mas até hoje não há provas de sua culpa. O roteiro explora com sutileza o desequilíbrio do protagonista, permitindo ao ator uma interpretação repleta de nuances - mesmo que, em sua reta final tudo se torne extremamente bizarro e quase inverossímil. A mistura entre drama e suspense pode causar estranheza em um primeiro momento, mas o filme se segura lindamente na dupla central de atores, em dias iluminados. Estreou por aqui sem maiores fanfarras, mas merece uma conferida - é um filme consistente e maduro de um cineasta promissor (Jarecki é o diretor do ótimo documentário "Na captura dos Friedman").

HALF NELSON - ENCURRALADOS - Merece um prêmio a criatura que deu o subtítulo de "Encurralados" a este drama difícil e um tanto quanto deprimente dirigido por Ryan Fleck (o título original se refere a um movimento de luta livre). Aqui, Gosling mereceu uma indicação ao Oscar por seu trabalho como Dan Dunne, um professor de história viciado em drogas que vê seu problema descoberto por uma aluna cujo futuro não parece nada alvissareiro (ela vive em um bairro barra-pesada, cercada por traficantes). Os dois ficam amigos e tentam ajudar um ao outro, mas o roteiro foge do convencional e do dramalhão, preferindo um distanciamento que, ao mesmo tempo em que ajuda a manter o tom quase documental, também atrapalha o envolvimento com o protagonista. Ryan mostra que sabe segurar um protagonista como poucos atores de sua geração, sem os exageros ou tiques que uma personagem assim normalmente exige. É um filme um tanto arrastado, mas que vale por seu trabalho acima da média. A indicação ao Oscar foi justa.

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HANNAH

Posted by Clenio on 13:27 in
Em mais uma amostra do quão obtusa é a distribuição dos filmes no Brasil, o filme "Hannah", dirigido pelo britânico Joe Wright chega ao formato DVD sem sequer ter passado pelas salas de exibição. Saindo lindamente de sua zona de conforto - a saber, os dramas românticos de época que lhe deram prestígio, como "Orgulho e preconceito" e a obra-prima "Desejo e reparação" - Wright brida o público, em seu novo filme, com uma bem-vinda e necessária lufada de ar fresco a um gênero que necessita há um bom tempo de renovação. Ainda que "Hannah" seja um filme de ação atípico (por inúmeras razões, sendo a principal delas a sua protagonista), é impossível negar que todos os elementos que fazem a alegria do espectador estão muito bem representados. Mesmo que não seja um filme que imediatamente possa ser reconhecido como uma obra de Wright, "Hannah" é visualmente criativo, dirigido com competência e, o que é melhor ainda, tem um elenco de encher os olhos.

Saoirse Ronan (a garotinha indicada ao Oscar de coadjuvante por "Desejo e reparação") vive a personagem-título, uma menina criada isolada do mundo e treinada por seu pai, um ex-agente da CIA (vivido pelo sempre ótimo Eric Bana) para tornar-se uma assassina perfeita. Sem contato algum com qualquer tipo de tecnologia e outros seres humanos, ela, aos 16 anos e considerada pronta em sua preparação, sai de sua cabana na Finlândia para o mundo, especialmente com o objetivo de fugir da misteriosa agente Marissa Wiegler (a esplêndida Cate Blanchett), que tem por objetivo principal eliminá-la - por motivos que o roteiro só irá esclarecer aos poucos.

O roteiro de "Hannah" não é exatamente um primor quando se trata de aprofundar suas personagens, que nunca ultrapassam o tom superficial e um tanto onírico da trama (que, segundo o cineasta, buscou inspiração em contos dos irmãos Grimm). No entanto, Wright surpreende muito positivamente nas sequências em que a protagonista vai à luta (literalmente): ao som da trilha espetacular de Chemical Brothers e com uma edição inteligente, o filme não deixa nada a dever a outras obras estreladas por heroínas femininas, como "Salt" e "Nikita" (aqui, claramente uma referência). Nesse quesito, a jovem Ronan mostra todo o potencial de tornar-se uma das atrizes mais importantes de sua geração: além de sair-se muito bem como matadora, ela também é capaz de transmitir toda a gama de emoções que sua personagem exige (e já dá pra ficar com água na boca de imaginar sua nova colaboração com Wright, na refilmagem de "Anna Karenina").

"Hannah" é visualmente arrebator desde sua primeira cena e, graças a seu diretor extremamente talentoso e um elenco impecável, consegue ser um dos entretenimentos mais consistentes do ano. Infelizmente, só mesmo em DVD...

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AINDA...

Posted by Clenio on 17:14 in
Oi, cadê você com suas reclamações da vida? Cadê seu sotaque preocupado que se aliviava com uma boa dose de cerveja? Cadê sua raiva do mundo, seu desprezo pela humanidade, seu sentimento de superioridade mesclado com seu senso de inadequação? Cadê você, onde anda seu pensamento, por onde vaga seu desejo? Eu preciso saber de você, da sua vida, dos seus planos, de suas crises... Eu preciso!

Em que mesas de bar você anda afogando suas eternas mágoas que tanto tentei curar? Com que tipo de pessoa você desabafa seus medos, suas bravatas? Que tipo de filmes você anda assistindo, que livros anda lendo (ou relendo)? Quais novas canções tristes e melancólicas lhe tem feito viajar para fora do seu mundo torturante? Ainda existe dentro de você aquele pedacinho de céu que impede o inferno de assolar sua existência? Quais são suas ideias para enfrentar mais um verão? Quem anda ocupando seu coração?

Eu continuo aqui, levando uma existência sem você, mas lembrando cada contorno do seu rosto, cada detalhe da sua voz, cada idiossincrasia de sua personalidade tão caótica, e isso me assusta, isso me assombra, me sufoca, me apavora. Tenho medo de não conseguir apagar de minha memória todos os planos que fiz com você, todas as certezas que construí, toda a coragem que arrumei como se fosse a última possibilidade de uma utopia inimaginável. Tenho medo - e a cada dia ele me parece menos paranoia e mais uma verdade insofismável - de nunca mais ver em outras pessoas as qualidades que vi em você, mesmo que a dor e a tristeza muitas vezes tenham acompanhado a felicidade (e quando é que não é assim quando se ama de verdade??)

Eu queria dizer que estou bem, que sua ausência me libertou e me deixou menos angustiado e mais leve, mas mentiras nunca fizeram parte do meu show junto a você. Eu poderia dizer que já me apaixonei de novo, que vislumbrei em outro alguém a alma que senti saindo de suas palavras tristes. Eu seria esperto e soaria menos fracassado se dissesse que superei a distância emocional que nos separa, mas quem sou eu para berrar inúteis falácias se o universo - pra quem soltei impropérios os mais variados - sabe da dor que se mantém viva no meu coração? Eu queria dizer que apaguei seu número de telefone da discagem rápida... mas isso tampouco é verdade. Ele ainda está lá, me chamando como um mau agouro, como um precipício, como um corvo em busca do alimento diário.

Não, eu não te esqueci. E aquelas canções dolorosas que dividimos em noites frias ainda me fazem chorar....

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CONTRA O TEMPO

Posted by Clenio on 13:17 in
Duncan Jones é filho do cantor David Bowie. Apesar desse impressionante pedigree, pouca gente além dos fãs de seu famoso progenitor sabia seu nome até 2009, quando ele estreou como cineasta. O filme "Lunar", estrelado por Sam Rockwell, recebeu elogios entusiasmados da crítica e, o que não é nada mal, um BAFTA de melhor diretor britânico estreante. Agora, aos 40 anos, Jones chega ao cinemão hollywoodiano com "Contra o tempo", um filme que, assim como em sua estreia, aposta mais na inteligência do que em um ritmo alucinante. O resultado é mais consistente do que a maioria dos filmes de ação da temporada, mas ainda assim dá a impressão de ter acabado rápido demais.

O filme já começa em plena ação, quando o jovem Colter Stevens (Jake Gylenhaal) acorda, sobressaltado, durante uma viagem de trem. Um tanto perdido, ele estranha o fato de, aparentemente, conhecer a mulher que está à sua frente (Michelle Monaghan), mesmo que não lembre absolutamente nada a seu respeito. As coisas ficam ainda mais confusas quando, ao olhar-se em um espelho, ele vê o reflexo de outro homem e, pior ainda, quando o trem explode. A partir daí, tanto o espectador quanto o protagonista ficam sabendo do que se trata: piloto de helicóptero do exército americano, Stevens foi ferido em combate e escolhido pela força aérea para participar de um projeto chamado "Source Code" - o que significa, basicamente, que ele utilizará o corpo de outro homem para, dentro de um prazo de oito minutos, tentar descobrir quem é o responsável pela explosão do trem. A cada vez que volta à personalidade que é obrigado a assumir, ele descobre mais detalhes sobre a missão.

Contando é confuso. Assistindo, é intrigante. O roteiro de "Contra o tempo" não é exatamente genial, mas a edição vigorosa, o talento de Jones em comandar cenas de ação que escapam do clichê e a atuação de Gylenhaal - alçado ao posto de protagonista depois do morno "O príncipe da Pérsia" - fazem do filme um entretenimento bastante eficaz e a participação dos sempre competentes Vera Farmiga e Jeffrey Wright também colaboram para confirmar o que todo fã de adrenalina no cinema já começam a desconfiar: Duncan Jones é um nome a ser guardado.

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UM CONTO CHINÊS

Posted by Clenio on 11:49 in
Um dos mais prolíficos atores do cinema argentino (e protagonista de alguns de seus maiores sucessos de público e crítica), Ricardo Darín tem uma qualidade rara que o distingue da vasta maioria de seus colegas de profissão: um talento para engrandecer qualquer projeto no qual esteja envolvido. Uma prova dessa afirmação é "Um conto chinês", um drama simpático e leve que tem em sua presença o principal centro de interesse. Felizmente, além do trabalho mais uma vez excelente de Darín, o filme de Sebastián Borensztein apresenta outras qualidades dignas de nota, como um bom humor delicado e um romantismo discreto.

Baseado em inacreditáveis fatos reais, "Um conto chinês" começa com um bizarro acidente, onde o jovem chinês Jun (Ignacio Huang, ótimo) perde a mulher que ama quando uma vaca cai dos céus justamente em cima do barco onde ele está em vias de pedir-lhe em casamento. E é justamente Jun que vai aparecer na vida de Roberto (vivido por um Darín à vontade como sempre), o metódico dono de uma ferragem que herdou do pai e que vive na capital argentina. Sem conseguir compreender nada do que Jun fala, Roberto tenta ajudá-lo a encontrar seu tio, nem sempre contando com a boa-vontade dos órgãos do governo que, em tese, deveriam colaborar com a busca. Dentro do prazo de uma semana estabelecido pelo comerciante para que tudo se resolva, surge entre eles uma inusitada amizade e o sisudo Roberto passa a ver com outros olhos sua relação distante com a apaixonada Mari (Muriel Santa Ana).

O roteiro de "Um conto chinês", co-escrito pelo diretor, não foge muito do clichê - a história do surgimento de uma amizade em situações improváveis não é exatamente original - mas é delicado e honesto, nunca prometendo mais do que pode oferecer, além de alternar o surrealismo da trama central com as histórias inusitadas recortadas dos jornais por Roberto - uma das quais é justamente a tragédia que envolve Jun. Narrados de forma bem-humorada, tais desvios não atrapalham a ação, muito pelo contrário: dão uma leveza ainda maior ao roteiro simples mas não simplório.

"Um conto chinês" é mais uma pequena pérola da cinematografia argentina, que vem se firmando como uma das mais interessantes da América Latina. Vale dar uma espiada.

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