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O GRANDE HERÓI

Posted by Clenio on 17:54 in
Alguns já reclamaram que se trata de mais uma obra que exalta o patriotismo americano - como se ufanismo fosse crime ou alterasse a qualidade de um filme em termos cinematográficos. Mas o fato é que "O grande herói", dirigido pelo ator/cineasta Peter Berg - que já havia demonstrado seu interesse por temas polêmicos em "O reino", de 2007 e comandou o mastodôntico fracasso "Battleship, a batalha dos mares" em 2012 - passou por cima de qualquer ideologia política para criar um poderoso drama de guerra que vem surpreendendo nas bilheterias ianques (tradicionalmente avesso a produções do gênero, salvo raras exceções) e caindo no gosto da crítica - foi eleito um dos dez melhores filmes do ano pela conceituada National Board of Review.

A encenação crua e realista de Berg de uma história real, ocorrida em 2005, durante a guerra no Afeganistão - e que já estava nos planos do diretor desde 2008, quando ele leu o livro que deu origem ao roteiro - remete às duras e violentas cenas de "Falcão negro em perigo", que deu a Ridley Scott uma indicação ao Oscar de diretor em 2002. Porém, enquanto Scott aproveitou a oportunidade para explorar seu virtuosismo técnico, sem focar-se a contento nos dramas de seus inúmeros personagens, Berg segue um caminho quase inverso. Sim, as cenas de conflito físico são dirigidas com segurança invejável e não poupam a audiência de sentir-se dentro da ação - para o que colabora também a maquiagem detalhista e a edição de som (que concorre ao Oscar) - mas o roteiro também se dá ao trabalho de dedicar boa parte de seu segundo ato ao desenvolvimento de seus protagonistas. Logicamente não há tempo para uma maior profundidade, mas contar com um elenco coadjuvante formado por Emile Hirsch, Eric Bana e Ben Foster (especialmente o último, em mais uma atuação estupenda) já é meio caminho andado para provocar a empatia essencial a uma história que, de outra maneira, seria apenas mais um filme de guerra a preencher as sessões noturnas da televisão.

Outro ponto favorável a "O grande herói" - que conta a história de um grupo de fuzileiros americanos que veem falhar sua missão de capturar um líder da Al Qaeda nas montanhas do Afeganistão e precisam lutar pela sobrevivência - é a presença de seu ator central, Mark Wahlberg. Surgido no mundo do entretenimento como modelo de cuecas Calvin Klein e posteriormente como o rapper Marky Mark, Wahlberg se reinventou como ator respeitado, presente em filmes prestigiados como "Boogie nights", "Três reis" e "Os infiltrados", de Martin Scorsese, pelo qual chegou a ser indicado ao Oscar. Na pele de Marcus Luttrell - que lidera a missão e acaba encontrando a salvação onde menos poderia esperar (com a ajuda do grande herói do título nacional) - o ator mostra que sabe escolher boa parte dos projetos dos quais participa (deixemos de lado bobagens como "Sem dor, sem ganho") e se manter sempre em evidência na fugaz fogueira das vaidades hollywoodianas com filmes de visibilidade e qualidade dramática.

Uma das boas surpresas da temporada, "O grande herói" ganha o público logo nos créditos de abertura - em cenas que mostram o rígido treinamento dos fuzileiros - e mantém sua atenção durante duas horas de adrenalina nas alturas, que se encerram com uma melancólica versão da clássica "Heroes", de David Bowie, na voz de Peter Gabriel. Um filme imperdível.

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JOGOS VORAZES - EM CHAMAS

Posted by Clenio on 16:30 in
Já está virando meio tradição dentro da indústria hollywoodiana: talvez por não precisar apresentar seus personagens e poder partir direto pra ação, talvez porque seus criadores sabem que a exigência do público aumenta ou talvez porque existe uma maior familiaridade com o material, os segundos capítulos da maioria das franquias cinematográficas contemporâneas conseguem ser melhor que o original. Foi assim com o "Homem-aranha 2" de Sam Raimi, com o "Batman, o cavaleiro das trevas", de Christopher Nolan e com "X-Men 2", de Bryan Singer. E é assim com "Jogos vorazes, em chamas", continuação do mega bem-sucedido filme de 2012 , baseado na trilogia escrita por Suzanne Collins. Agora sob a batuta de Francis Lawrence - cujo currículo inclui o interessante "Constantine" e a adaptação de "Eu sou a lenda" com Will Smith - a história de Katniss Everdeen em sua luta pela sobrevivência em um jogo de vida ou morte cada vez mais violento (e com intenções sociopolíticas nada justas) se t

Conforme dito acima, "Em chamas" tem a vantagem de não precisar perde tempo explicando sua trama e apresentando seus personagens - e para isso é crucial que a audiência já tenha assistido ao primeiro capítulo. Quando o filme começa, com eventos que acontecem um ano após o término do filme original, Katniss (Jennifer Lawrence, a nova queridinha de Hollywood) e seu parceiro Peeta Mellark (Josh Hutcherson), vencedores da 74ª edição dos jogos do título, começam uma turnê para todos os distritos, como forma de aproximar-se da população e dar credibilidade ao governo. Porém, ao perceber a desilusão do povo em relação os problemas sociais que os cercam, o casal (forjado para vencer os jogos) passa a questionar a liderança do Presidente Snow (Donald Sutherland). Temendo uma revolução, o presidente cria uma nova regra, que obriga todos os vencedores prévios a lutar novamente - sua intenção é acabar com a vida de Katniss, impedindo assim um levante popular.

Sob a forma de um filme de ação direcionado ao público infanto-juvenil - o que explica a violência apenas moderada considerando as possibilidades da trama - Lawrence aproveita a história de Suzanne Collins para, exatamente como aconteceu no primeiro, discutir temas de relevância, como desigualdade social, fascismo e manipulação por parte da mídia. Logicamente, por tratar-se de uma produção cujo público-alvo não esteja exatamente disposto a querelas políticas, o subtema é tratado apenas superficialmente (ainda que seja bastante claro para qualquer pessoa minimamente esclarecida), como pano de fundo para uma obra que oferece exatamente aquilo que sua plateia deseja: cenas de ação bem realizadas, um triângulo amoroso eficiente, personagens cativantes (interpretados por atores de qualidade inquestionável, como Philip Seymour Hoffman e Jeffrey Right) e um ritmo incapaz de cansar, apesar dos longos 146 minutos de projeção. Somadas a um criativo visual - refletido no figurino irreverente de Trish Summerville - e um roteiro redondinho - co-escrito por Simon Beaufoy, vencedor do Oscar por "Quem quer ser um milionário?" - essas qualidades fazem com que o único problema do filme seja justamente ter que esperar até o fim do ano pelo próximo capítulo - que, segundo mais uma nova tradição imposta pela busca por lucros, será dividido em dois filmes.

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A VIDA SECRETA DE WALTER MITTY

Posted by Clenio on 19:44 in
Em 1947, uma adaptação do conto de James Thurber chamado "The secret life of Walter Mitty" chegou às telas de cinema, com o título de "O homem de 8 vidas", estrelado por Danny Kaye. No filme, o personagem-título era um introvertido revisor de livros baratos que se via envolvido em uma conspiração política quando encontrava com uma misteriosa mulher de posse de um ainda mais misterioso livro. Pouco lembrado pelas plateias contemporâneas, o filme de Norman Z. McLeod tem pouco a ver com uma nova versão do conto de Thurber, dirigida e estrelada por Ben Stiller. Adaptando a trama para a atualidade - mais precisamente para o ano de 2009, quando a revista Life saiu das bancas de jornais para transformar-se em um site da Internet e consequentemente teve que dispensar centenas de funcionários - e utilizando-se dos melhores efeitos visuais que o orçamento de 90 milhões de dólares pode comprar, Stiller assina um produto simpático e bem realizado, mas que peca em sua indecisão entre comédia, drama e filme de ação.

O Walter Mitty de Stiller - que teve Sacha Baron-Cohen, Jim Carrey, Owen Wilson e Mike Meyers entre seus possíveis intérpretes - trabalha no arquivo de fotos da revista Life, em um emprego que não exige maiores talentos sociais, mas que o faz manter uma cordial relação com o famoso fotógrafo Sean O'Connell (Sean Penn), cuja vida de aventuras e liberdade ele inveja conformadamente. Apaixonado pela colega de trabalho Cheryl Melhoff (Kristen Wiig) - a quem tenta contatar através de um site de relacionamentos - Walter Mitty encontra o desafio de sua vida quando recebe a missão de encontrar o negativo de uma foto de O'Connell que seu chefe exige que seja a capa da última edição impressa da revista. Seguindo pistas deixadas por outros trabalhos do fotógrafo, ele acaba embarcando em uma aventura que só mesmo seus sonhos mais radicais e sua imaginação criativa poderiam sonhar.... e que começa na Groenlândia.

"A vida secreta de Walter Mitty" tem inúmeras qualidades, desde a precisão de seus efeitos visuais (utilizados com parcimônia e sutileza) até seu elenco, que inclui a sempre fascinante Shirley MacLaine. Também é feliz ao examinar pessoas que muitas vezes ficam presas à sua imaginação em detrimento de levar uma vida mais ativa. Mas Stiller - conhecido pela direção dos hilariantes "Zoolander" e "Trovão tropical" - parece não sentir-se à vontade quando fala sério. Sempre que o filme começa a perder sua ingenuidade e seu nonsense há um queda no ritmo que compromete o resultado final. Felizmente os bons momentos que o ator/diretor consegue sempre que deixa sua veia cômica aflorar - e a presença magnética de Sean Penn em uma única sequência que vale por todas - fazem com que uma sessão descompromissada valha a pena.

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ELA

Posted by Clenio on 17:49 in
Deve ser interessante conversar com Spike Jonze. Em um carreira como cineasta que conta com apenas quatro obras, o ex-marido de Sofia Coppola, cujo inicio de carreira foi dirigir videoclipes de artistas como Bjork e Fatboy Slim é, sem qualquer dúvida, uma das mais criativas mentes da engessada Hollywood do século XXI, capaz de legar ao público trabalhos que tem como principal característica a ousadia temática e narrativa. Foi assim com o bizarro "Quero ser John Malkovich" - que lhe deu, de cara, uma indicação ao Oscar de diretor - com o metalinguístico "Adaptação" - que deu a Meryl Streep um de seus papéis mais desafiadores - e até com o infantil "Onde vivem os monstros" - que fugiu da esfera limitadora da faixa etária para emocionar muitos adultos. Não é de estranhar, portanto, que seja seu nome que esteja nos créditos de "Ela", o estranho no ninho entre os indicados ao Oscar de melhor filme de 2013.

Estranho no ninho? Sim. Em um ano em que o favoritismo está entre o superestimado "Gravidade" - que à parte os efeitos visuais é apenas mais um filme comercial bem feitinho - e o socialmente relevante "12 anos de escravidão" - que apesar das qualidades é o tipo de obra que a Academia adora cobrir de láureas - é surpreendente que uma obra como "Ela" tenha encontrado seu espaço. Bizarro desde seu tema - a história de amor entre um homem e um sistema operacional de última geração criado a partir das necessidades do proprietário - até a forma com que lida com ele - sem apelos sentimentais mas ainda assim emocionalmente potente - o filme de Jonze foge bastante do padrão dos tradicionais romances produzidos em Hollywood por pelo menos mais uma razão: exigir que o público não desligue o cérebro para acompanhar sua trama.

Em um futuro não muito distante, o introvertido Theodore (Joaquin Phoenix), ainda machucado pelo fim de seu casamento, compra um novo sistema operacional, que pode ser moldado de acordo com a personalidade e as necessidades do proprietário. Batizado com o nome de Samantha, o SO passa a lhe fazer companhia em seus momentos de solidão e, surpreendentemente, surge entre eles um relacionamento que ultrapassa os limites tecnológicos. Apaixonados um pelo outro, os dois precisam aprender a lidar com a nova situação - não tanto por causa das pessoas a seu redor, acostumadas com os avanços da informática, mas por causa das próprias limitações físicas e emocionais da bizarra situação, bem como a dificuldade de Theodore de conviver com seus próprios sentimentos.

Interpretado magistralmente por Joaquin Phoenix - a escolha ideal para personagens à margem do convencional - Theodore retrata com perfeição um geração insegura em termos sentimentais que, mesmo cercada de tecnologia e até mesmo de pessoas de carne e osso, não consegue libertar-se do medo da solidão e do sofrimento. Perito em escrever cartas de amor para estranhos - sua profissão - ele é incapaz de deixar para trás um relacionamento fracassado e apela para o que deveria ser um porto seguro, apenas para descobrir que o amor é, definitivamente, algo intangível e imensurável, que foge de qualquer padrão e cálculo. É apaixonante a maneira com que Jonze consegue contar sua história sem contar muito mais do que com o trabalho de Phoenix, a voz de Scarlett Johansson, pouquíssimos coadjuvantes (destaque para a sempre ótima Amy Adams) e um visual clean, que transmite a sensação de vazio que perpassa a existência do protagonista até seu encontro com Samantha. A bela trilha sonora - indicada ao Oscar, assim como a canção "The moon song", delicada e comovente - completa o quadro, comentando a ação sem interferir em excesso nos devaneios de Theodore.

Ao mesmo tempo de uma complexidade brilhante e uma simplicidade estontente, "Ela" talvez seja o melhor filme da carreira de Jonze. E isso não é pouco. Se repetir-se na festa do Oscar, o prêmio de roteiro que já ganhou no Golden Globe não seria nada menos do que absolutamente justo.

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CLUBE DE COMPRAS DALLAS

Posted by Clenio on 17:53 in
Não é preciso ser especialista em cinema em geral - e nos meandros da Academia que oferece o Oscar em particular - para saber que um ator (ou atriz) que tem coragem de despir-se da vaidade para encarnar um papel tem enormes chances de sagrar-se vencedor de uma estatueta dourada. Exemplos não faltam, e provavelmente no dia 02 de março próximo a lista vai contar com outros dois nomes: Matthew McConaughey e Jared Leto, que vem fazendo uma limpa nas cerimônias de premiação consideradas prévias do prêmio máximo do cinema americano. Seus desempenhos são tão impactantes que, a despeito da qualidade duvidosa de "Clube de compras Dallas", levaram a obra de Jean-Marc Vallé ao Olimpo de duas das categorias mais nobres da premiação: filme e roteiro original.

Não que o filme seja exatamente ruim, mas dava para esperar muito mais da direção de Vallé, que conquistou todo mundo com o simpático e criativo "C.R.A.Z.Y", em 2005. Seu trabalho em "Clube de compras" é mecânico, quadrado e - pior dos pecados para um filme que trata de um assunto tão potencialmente dramático - indiferente. Mesmo que fique evidente a entrega de McConaughey e Leto a seus papéis é dificil envolver-se com a narrativa, porque o roteiro não permite a aproximação do público, tratando tudo com um distanciamento que, se mirou na neutralidade, acertou na frieza. Por mais que os atores - especialmente Leto, mostrando que seus bons trabalhos em filmes como "Réquiem para um sonho" e "Capítulo 27", em que interpretava o assassino de John Lennon, não eram sucessos isolados - se esforcem em cativar a audiência, a opção de Vallé em fugir do sentimentalismo contrasta com a potência emocional da história real de Ron Woodroof, um eletricista mulherengo do Texas que, contaminado com o vírus HIV em 1985 - portanto, quando a doença ainda era uma incógnita junto à medicina e era tratada como exclusividade dos homossexuais - precisa lidar com a burocracia acerca do tratamento com remédios experimentais e resolve criar um sistema para proporcionar aos doentes americanos o acesso às novas drogas, o tal Clube de Compras do título.

Preconceituoso e sem maiores preparos para lidar com sua nova realidade, Ron Woodroof é um personagem e tanto, repleto da complexidade que qualquer bom ator sonha, e Matthew McConaughey - que vem há alguns anos tentando ser levado a sério e finalmente conseguiu sua grande chance para isso - desencumbe-se do desafio com louvores, não apenas fisicamente mas também dramaticamente, apesar de ter que lutar contra um roteiro incapaz de explorar a contento todas as possibilidades de sua personalidade conflitante. Nesse ponto, Jared Leto sai-se melhor, já que Rayon, sua personagem, consegue ser um pouco (não muito) melhor desenvolvida, apesar do filme jogar fora a promissora relação entre ele - um jovem travesti que se prostitui e é contaminado pela AIDS - e seu pai - um homem rico e conservador que não aceita seu modo de vida. É de Leto a única cena capaz de ser lembrada futuramente - quando ele conversa consigo mesmo diante de um espelho - e mesmo assim a responsabilidade é muito mais sua do que da direção.

Por fim, "Clube de Compras Dallas" é um típico filme feito para ganhar Oscar. Nesse ponto, não se pode dizer que tenha sido mal-sucedido, já que as vitórias de seus atores já é quase certa. Mas, ao mesmo tempo, desperdiçou uma boa história e bons personagens em um roteiro raso e dinamicamente falho, que encontra espaço até mesmo para uma relação dispersiva entre o protagonista e a médica interpretada pela sempre fraca Jennifer Garner. Uma pena que um potencial tão grande tenha resultado em algo tão banal.

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ÁLBUM DE FAMÍLIA

Posted by Clenio on 15:57 in
Transpor um texto teatral para as telas de cinema não é tarefa das mais fáceis, e até mesmo diretores experientes correm o risco de cair na armadilha da adaptação literal enfadonha - haja visto Roman Polanski, que, mesmo com um elenco brilhante e seu talento inegável, não conseguiu fugir da monotonia com seu "O deus da carnificina". Portanto, não é de estranhar que "Álbum de família", baseado em um espetáculo premiado com o Pulitzer e o Tony, fique tanto a dever em termos de qualidade cinematográfica. Mesmo com um elenco de sonhos - que inclui as indicadas ao Oscar Meryl Streep e Julia Roberts juntas pela primeira vez na tela - e os diálogos vivos e quentes escritos pelo também ator Tracy Letts, falta brilho à direção de John Wells, cujo currículo inclui apenas um outro longa-metragem, o elogiado mas pouco visto "A grande virada" - além de vários episódios de séries televisivas, como "Plantão médico".

Ao contrário de Mike Nichols - que imprimiu personalidade e vivacidade a seus "Quem tem medo de Virginia Woolf?" e "Closer, perto demais", ambos adaptados de sucessos dos palcos - Wells não consegue fazer a plateia esquecer que, por trás da trama repleta de rancor, segredos e ressentimentos criada por Letts existe uma origem teatral bastante óbvia em sua estrutura e desenvolvimento de personagens. Diante dessa falha que compromete o ritmo do filme - uma surpresa, quando se sabe que o diretor vem da tv, onde é mandatório saber contar uma história com começo, meio e fim em menos de sessenta minutos - resta ao público ficar estarrecido (mais uma vez) com o talento superlativo de Streep e surpreendido com a maturidade imposta pela eterna linda mulher Roberts em um papel completamente diferente de tudo que fez até hoje no cinema.

A indicação de Streep ao Oscar de melhor atriz - sua 18ª lembrança por parte da Academia, um recorde impressionante - não representa um comodismo por parte dos votantes como muita gente fez crer na ocasião em que os indicados foram divulgados: seu trabalho com a amarga e cruel Violet Weston, matriarcca de uma família desestruturada que se reúne para o funeral do pai suicida, é brilhante, apesar de um certo maniqueísmo do roteiro que atrapalha até mesmo a empatia do espectador. Cada vez que Violet abre a boca ela solta um veneno, uma agressão, uma absoluta falta de compaixão com quem quer que seja, desde a empregada índia até suas três filhas, a quem trata com desrespeito e quase indiferença. Às três filhas - cada um com uma saudável cota de problemas - sobra apenas encontrar uma maneira de lidar com tanta amargura sem partir para a pancadaria (e nem sempre conseguem fazer isso, como mostra a genial cena do jantar familiar que acaba sendo o clímax do filme, mesmo que aconteça um tanto cedo demais).

Julia Roberts, que concorre ao Oscar de coadjuvante mesmo que sua personagem tenha tanta importância quanto a de Streep, vive Barbara, a filha preferida do pai, que abandonou a vida no interior do Oklahoma para acompanhar o marido (Ewan McGregor), de quem está separada graças a uma infidelidade conjugal - e que tem com a própria filha adolescente (Abigail Breslin) uma relação conflituosa. Juliette Lewis (voltando aos holofotes depois de um sumiço injusto) interpreta Karen, a filha desajustada e volúvel que está noiva de um homem mais velho (Dermot Mulroney) - que não demora a arrastar a asa para a sobrinha da namorada, mesmo sabendo que ela tem apenas 14 anos. E Julianne Nicholson compõe uma Ivy delicada e submissa às idiossincrasias da mãe, que encontra um caminho para ser feliz no amor apenas para vê-lo desmoronar diante de seus olhos. Completando a disfuncional família estão a irmã de Violet, Mattie Fae (Margo Martindale, ótima), seu compreensivo marido (Chris Cooper) e seu filho único, Little Charles (Benedict Cumberbatch), a quem ela trata com total desprezo.

O elenco de "Álbum de família" é espetacular, sem um único elo fraco. O texto é forte e devidamente respeitado (talvez até demais). A trama tem surpresas e reviravoltas em número suficiente para prender a atenção e  a bela canção de Kings of Leon que fecha o filme traduz com perfeição o clima da obra. Mas, apesar de tudo isso, como cinema é insatisfatório. É quase um teatro filmado. Quem não se importa com isso com certeza terá duas horas de grandes interpretações. Não é pouco, mas poderia ser ainda mais.

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O LOBO DE WALL STREET

Posted by Clenio on 21:06 in
Pode causar um certo estranhamento o fato de "O lobo de Wall Street", novo filme de Martin Scorsese, ser tachado de comédia por parte da crítica - e até dos votantes do Golden Globe, que deram a Leonardo DiCaprio uma estatueta na categoria. No entanto, no fundo da empolgante história real que concorre a cinco Oscar, incluindo de melhor filme, está realmente uma comédia. Histérica, de humor negro e profundamente crítica, mas uma comédia. Do ponto de vista brilhante do cineasta que acostumou seu público a petardos cinematográficos do quilate de "Taxi driver" e "Os bons companheiros", mas ainda assim uma comédia. E se talvez seja difícil compreender esse raciocínio um tanto tortuoso diante dos excessos - de sexo, de drogas e de violência moral - de suas três horas de projeção, basta prestar atenção na ironia da edição magistral  injustamente esquecida pelo Oscar, na encenação propositalmente muitos tons acima do normal e da forma como o assunto, normalmente levado a sério pelo cinema, é totalmente desconstruído pelo roteiro dinâmico de Terence Winter: pode não ser uma comédia óbvia, mas é, sem sombra de dúvidas, um filme muito, muito engraçado.

Posto lado a lado com o sisudo "Wall Street, poder e cobiça", que Oliver Stone realizou em 1987, o novo trabalho de Scorsese mostra sua verdadeira face: é um deboche disfarçado de crítica, uma crítica banhada em sarcasmo e um retrato psicodélico das entranhas do mundo quase surreal dos negócios financeiros, visto através dos olhos de um de seus integrantes mais bem-sucedidos, vivido aqui com uma verve histriônica nunca antes vista em Leonardo DiCaprio, talvez em seu melhor trabalho sob o comando do cineasta nova-iorquino. Sem falsas amarras, DiCaprio se entrega a um anti-heroi que somente o seu carisma consegue salvar da antipatia da audiência, o corretor da bolsa de valores Jordan Belfort, que, graças a sua inigualável lábia - e alguns desvios éticos, conseguiu amealhar fortunas no mercado financeiro americano do final dos anos 80. Constantemente com a consciência alterada - por drogas ou por sua própria ambição e falta de limites morais - Belfort conduz o público a um espetáculo de tirar o fôlego, repleto de sequências filmadas com a segurança de que somente um profissional do nível de Scorsese é capaz.

Somente Scorsese consegue, por exemplo, utilizar trechos de um desenho animado de Popeye para ilustrar a overdose de anfetaminas do protagonista e de seu sócio (Jonah Hill, excelente no timing cômico e responsável por alguns dos melhores momentos do filme) sem soar bobo e filmar longos discursos messiânicos de Belfort a seus associados sem que eles pareçam iguais - responsabilidade também da habitual colaboradora Thelma Schoonmaker, que mantém a agilidade da trama mesmo quando o relógio chega cravado aos 180 minutos na tela, quase todos essenciais à compreensão e desenvolvimento da história, narrada com precisão cirúrgica e que ainda conta, como uma espécie de piada interna, com as presenças luxuosas de três cineastas que esporadicamente fazem as vezes de atores: Jon Favreau, Spike Jonze e Rob Reiner, em uma atuação hilariante como o pai do personagem de DiCaprio, que tenta por um pouco de ordem no caos da vida do filho.

E se Leonardo DiCaprio deita e rola no papel principal, seus coadjuvantes não ficam atrás. Jonah Hill - que surpreendeu com a indicação ao Oscar de coadjuvante - faz com ele um par perfeito, em cenas que caminham na tênue linha do pastelão mas escapam dele majestosamente. E Matthew McConaughey - maior rival de DiCaprio na disputa pela estatueta de melhor ator deste ano - acrescenta mais uma grande atuação à lista de trabalhos que marcam sua ressurreição no mercado hollywoodiano nos últimos anos como um espécie de mentor do protagonista - um Gordon Geko da nova geração, com o mesmo cinismo do clássico personagem de Michael Douglas, mas aditivado com cocaína.

Um dos mais sensacionais filmes da temporada - e um clássico instantâneo de Martin Scorsese - "O lobo de Wall Street" não deve sagrar-se vencedor do Oscar. É corajoso demais, ousado demais e bom demais para ser reconhecido como o melhor filme do ano por uma Academia (ainda) muito conservadora.

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TRAPAÇA

Posted by Clenio on 23:22 in
Em 1999 o cineasta David O. Russell realizou um dos primeiros filmes americanos a tratar sobre a guerra no Golfo, a comédia de ação "Três reis", que demonstrava um senso de humor afiado e uma criatividade que seria ainda mais perceptível na bizarra comédia "Huckabees, a vida é uma comédia", lançado cinco anos depois. Depois disso, de uma hora pra outra, o nova-iorquino de 55 anos tornou-se um queridinho absoluto da Academia. "O vencedor", de 2010, deu a Christian Bale e Melissa Leo os Oscar de coadjuvante, além de ter indicado Amy Adams na mesma categoria. "O lado bom da vida", de 1012, premiou Jennifer Lawrence como melhor atriz - e indicou também Bradley Cooper a melhor ator e Robert DeNiro e Jackie Weaver a coadjuvantes. Ambos concorreram aos Oscar de filme, direção e roteiro. Comprovando sua fase sem igual, Russell repetiu o feito este ano: "Trapaça", seu novo trabalho, concorre a dez estatuetas, incluindo as cinco principais - além de, como aconteceu ano passado, ter todos os seus quatro atores principais entre os finalistas nas categorias de interpretação. Isso tudo - mais o Golden Globe de melhor comédia/musical e o prêmio de melhor filme pela Associação de Críticos de Nova York - levanta uma importante questão: sua nova obra é assim tão boa?

Depende. Tendo "O vencedor" e "O lado bom da vida" - filmes apenas corretos exageradamente incensados - como base de comparação, "Trapaça" é um salto de qualidade na carreira de Russell, tanto em termos narrativos quanto de direção de atores. Mas, percebendo claramente que o cineasta bebe direto na fonte do cinema enérgico e marginal de Martin Scorsese, não deixa de ser estranho vê-lo disputar o Oscar com o próprio mestre - e ter muito mais chances de sair-se vitorioso do que ele. "O lobo de Wall Street", do bom e velho Marty, também está no páreo do Oscar, mas é sua versão light - estrelada por Christian Bale e Amy Adams - que parece estar na dianteira pelos prêmios.

A trama de "Trapaça" é complexa como convém a um filme que trata de golpes financeiros, mas narrada de forma convencional, sem maiores arroubos de criatividade, preocupando-se mais com as relações interpessoais de seus personagens, interpretados por atores em momentos de rara inspiração. Christian Bale está mais uma vez irreconhecível como Irving Rosenfeld, um golpista que, em 1977, é forçado a trabalhar ao lado do agente do FBI Ritchie DiMaso (Bradley Cooper) como forma de ter seus crimes perdoados. Casado com a perua Rosalyn (Jennifer Lawrence) - acostumada com os luxos que uma vida de crime proporciona - Rosenfeld conta com a ajuda de sua amante, Sydney (Amy Adams), para tentar jogar o político Carmine Polito (Jeremy Renner) atrás das grades. Logicamente nem tudo sai como o planejado, o que leva todos a situações inesperadas - e a um final inteligente o bastante para justificar os momentos menos ágeis do roteiro.

A profusão de indicações de "Trapaça" tem mais a ver com os valores de produção - por se passar no final da década de 70 os figurinos e os cenários mereceram cuidado especial - e o elenco do que exatamente por suas qualidades inovadoras. Parte de um subgênero do cinema hollywoodiano - os filmes de roubo - a obra de Russell segue sua cartilha à risca, criando personagens simpáticos em sua marginalidade e uma trama rocambolesca na medida exata para prender a atenção e não confundir o público. Se Amy Adams utiliza a sensualidade pela primeira vez em sua carreira em um interpretação impecável e Bale mais uma vez mostra que é um ator extraordinário, os coadjuvantes Bradley Cooper e Jennifer Lawrence (protagonistas do filme anterior do diretor) não fazem feio, ainda que a elogiada Lawrence talvez exagere um pouco nas tintas de sua personagem - culpa dela ou da direção?

Em resumo, "Trapaça" é um bom filme, bastante superior às duas últimas obras de seu diretor, mas o excesso de indicações ao Oscar talvez represente mais um exemplo de alucinação coletiva que acomete frequentemente a Academia do que um atestado de suas qualidades.

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CARRIE, A ESTRANHA

Posted by Clenio on 16:41 in
A única vantagem desse desnecessário remake - assim como todos o são - de "Carrie, a estranha" é o fato de sua protagonista, a ótima Chloe Grace Moretz ser a primeira adolescente a representar a personagem criada pelo escritor Stephen King - a mais famosa personificação da heroína das vítimas de bullying, Sissy Spacek, que chegou a ser indicada ao Oscar por seu desempenho, tinha 26 anos quando o filme de Brian de Palma estreou, em 1976. Tirando esse detalhe que lhe dá um mínimo de veracidade, essa nova versão, dirigida por Kimberly Peirce, fracassa em seu principal objetivo: é um filme de suspense sem suspense.

Moretz - que chamou a atenção em outro remake, do terror escandinavo "Deixe ela entrar" e pela impagável Hit-Girl dos dois "Kick-ass" - faz o que pode na pele da massacrada Carrie, filha de uma religiosa fanática (vivida com a competência habitual por Julianne Moore) que, depois de anos estudando em casa e afastada das "tentações da carne", precisa lidar com a crueldade de suas colegas de escola quando tem a sua primeira menstruação diante de todas elas. Humilhada por causa de sua timidez e falta de sociabilidade - além de não vestir-se de acordo com as regras impostas pelas patricinhas com quem estuda - ela vê uma luz no fim do túnel de seu sofrimento quando o disputado Tommy Ross (Ansel Elgort) a convida para o baile de formatura, incentivado pela namorada, Sue (Gabriella Wilde). O que poderia ser o melhor momento de sua vida, porém, torna-se um pesadelo, que a obriga a lidar com seus recém-descobertos poderes telecinéticos.

Apostando em uma profusão de efeitos especiais que tiraram totalmente o charme sutil da obra cinematográfica original, o filme de Peirce peca em exagerar em praticamente tudo, pouco deixando para a imaginação - talvez subestimando a inteligência da audiência ou talvez sabendo que, para seu público-alvo, isso é um detalhe insignificante quando existe um banho de sangue. E sangue é o que não falta, para alegria dos sádicos de plantão. Infelizmente, ele não é o suficiente para justificar um remake que nada acrescenta ao original. Peirce - que debutou em Hollywood no poderoso "Meninos não choram" e dirigiu o pouco visto mas muito interessante "Stop-loss, a lei da guerra", com Channing Tatum e Joseph Gordon-Levitt - parece ter perdido a coragem demonstrada em seu filme de estreia, realizando uma obra engessada ao respeito exagerado ao livro de King. Pode agradar aos fãs do gênero, mas não é bom cinema.

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À PROCURA DO AMOR

Posted by Clenio on 19:45 in
Primeiro é necessário esquecer mais um título preguiçoso e genérico perpetrado pelas distribuidoras nacionais: "À procura do amor" não tem a MENOR relação com a história que o filme da diretora Nicole Holofcener quer contar. Depois, é imprescindível que se deixe de lado a resistência em abraçar filmes estrelados por atores sem músculos e atrizes sem botox. Dito isso, resta apenas relaxar e assistir-se a um dos últimos filmes do ator James Gandolfini com um sorriso no rosto, do início ao fim.

Indicada ao prêmio do Screen Actors Guild - uma justa e singela homenagem feita pelos colegas atores - a atuação de Gandolfini em nada lembra a audiência do célebre protagonista da série "Família Soprano", que tanto sucesso lhe proporcionou. Seu Albert é doce, bem-resolvido, pacífico e solitário, um homem divorciado que está em vias de ver a única filha partir em direção à universidade. Em uma festa, ele conhece a massagista profissional Eva (Julia Louis-Dreyfus), também divorciada, também mãe de uma jovem pré-universitária e disposta a encarar um relacionamento saudável e maduro. A relação entre os dois - divertida e sem maiores cobranças - sofre um baque quando Eva descobre que Albert é o ex-marido de Marianne (Catherine Keener), uma nova cliente com quem ela está iniciando uma amizade. Começando a ver Albert pelos olhos quase rancorosos de Marianne, a alto-astral massagista passa a questionar o futuro de seu caso amoroso.

Com um roteiro simples e próximo da realidade - ainda que sofra de uma certa superficialidade em alguns momentos - "À procura do amor" conquista exatamente pela despretensão. Holofcener - que tem no currículo a comédia dramática "Amigas com dinheiro", também com Catherine Keener no elenco - tem o dom de criar personagens reais, que soam como gente de verdade, e não personagens de cinema. A subtrama que acompanha a relação entre Eva e a melhor amiga da filha adolescente é de um frescor raramente vistos no cinema contemporâneo, assim como a química entre Louis-Dreyfus e Gandolfini. São eles, somados à simpatia da trama e ao elenco coadjuvante - que conta com a sempre ótima Toni Collette - que fazem valer a pena uma sessão descompromissada. Afinal, não é sempre que se pode assistir a um filme tão próximo e tão agradável.

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QUESTÃO DE TEMPO

Posted by Clenio on 22:11 in
É preciso ter uma certa dose de boa vontade para comprar a premissa inicial da comédia romântica "Questão de tempo", em tempos cínicos como os que correm: um rapaz sem graça e sem maiores atrativos físicos descobre, em seu aniversário de 21 anos que tem o poder - herdado de seu pai - de viajar no tempo: basta que esteja isolado em um armário ou banheiro e apertar com força as mãos para que consiga transferir-se para a data do passado (e só do passado) que escolher (desde que já tenha estado lá, o que impede ambições maiores, como transformar a história do mundo). De posse dessa valiosa informação, o rapaz a aproveita para resolver sua vida sentimental, principalmente quando se muda para Londres para cursar Direito e se apaixona por uma bela editora americana.

Uma vez acreditando no absurdo da ideia central, porém, o espectador acaba fisgado por um filme que se destaca dos demais congêneres por contar não apenas uma história de amor, mas várias. O roteiro esperto de Richard Curtis - que tem no currículo os deliciosos diálogos de "Quatro casamentos e um funeral" e o romantismo abundante de "Simplesmente amor" - não se restringe, felizmente, a contar como o desajeitado Tim (Domhnall Gleeson) conquista a esfuziante Mary (Rachel McAdams): em duas horas de projeção (um tanto exageradas, diga-se de passagem, com algumas cenas francamente dispensáveis), Curtis também oferece ao público a história do belo relacionamento entre ele e seu pai (interpretado com a verve histriônica já amplamente reconhecível de Bill Nighy) e sua preocupação com os problemas sentimentais da irmã, Katherine (Lydia Wilson) - que acabam por interferir diretamente em sua felicidade e o obrigam a tomar atitudes impulsivas.

Assim como acontece em vários filmes da mesma temática - mais recentemente o tenso "Efeito borboleta" - as ações de Tim tem consequências imprevisíveis, o que deixa a audiência em constante estado de dúvida em relação ao que está por vir. A maior vantagem do roteiro, porém, está no fato de não deter-se exclusivamente nas idas e vindas do casal protagonista, expandindo-se bravamente em terrenos menos explorados. Mesmo que por vezes soe um tanto superficial - e sem coragem de chegar até o fim de alguns dramas propostos - o filme conquista pela leveza no tratamento, pela simpatia do elenco e pela fluidez da trama, que acaba disfarçando seus pequenos pecados. Richard Curtis é, inegavelmente, um mestre em diálogos e faz bom uso deles, nunca pesando a mão, mesmo quando o dramalhão ameaça perigosamente dominar a narrativa - e encontra em seus atores os intérpretes ideais para seus personagens gente como a gente.

Enquanto Rachel McAdams já pode ser considerada uma especialista em filmes sobre viagens no tempo - ela está no elenco de "Te amarei para sempre" e "Meia-noite em Paris" - é o praticamente desconhecido Domhnall Gleeson, filho do ator Brendan Gleeson, a maior descoberta do filme. Completamente fora dos padrões convencionais de beleza, o ator de 30 anos - que teve um papel de destaque na "Anna Karenina" de Joe Wright - é capaz de transmitir todas as emoções que o roteiro pede, demonstrando que tem tudo para ter um futuro alvissareiro na capital do cinema, além de ter uma química invejável com McAdams e Bill Nighy.

Inteligente, delicado, simpático e bem-intencionado, "Questão de tempo" é uma comédia romântica das mais interessantes dos últimos tempos, graças à dosagem exata entre doçura e humor e ao elenco bem escalado. Altamente recomendável para qualquer público e sem contra-indicações.

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12 ANOS DE ESCRAVIDÃO

Posted by Clenio on 20:11 in
A curta filmografia em longa-metragem do cineasta Steve McQueen - até então restrita a dois nomes, os poderosos "Hunger" e "Shame" - ganha um importante terceiro capítulo com "12 anos de escravidão", que se utiliza de seu requintado senso estético para contar uma trama pungente e cruel sobre um dos períodos mais nefastos da história da humanidade. Baseado em um história real, seu novo trabalho - que já ganhou o Golden Globe de melhor drama e deve ser um dos favoritos ao próximo Oscar- tem um apelo mais universal do que os anteriores, mas, assim como eles, prescinde dos clichês ao evitar o sentimentalismo fácil, armadilha na qual os filmes sobre o tema frequentemente caem. Se a intenção do espectador é emocionar-se com longas sequências de maus-tratos ao som de um música grandiloquente e discursos empolados sobre liberdade, o filme não é este. "12 anos de escravidão" é forte, sim, mas sua força reside justamente em seu distanciamento milimetricamente calculado para emocionar sem pieguice.

O roteiro repleto de elipses - o que tanto ajuda na agilidade quanto atrapalha na compreensão de alguns fatos para quem está acostumado à maneira quase didática com que Hollywood normalmente trata seu público - talvez seja o primeiro fator de estranhamento do filme de McQueen."12 anos de escravidão" já começa sem explicar muito, deixando a audiência tão atônita quanto o protagonista, que se vê, sem entender muito o que está se passando, como um escravo, muito tempo depois de já ter sido liberto e ter uma vida como um homem comum nos EUA pré-Guerra Civil. É aos poucos que a trama começa a ser explicada, e mesmo assim, não de maneira linear. O roteirista John Ridley parece ter compreendido exatamente o estilo do cineasta, preferindo mostrar a luta do protagonista pela reconquista da liberdade mais através de imagens poderosas do que por diálogos - não chega a ser nervosamente silencioso como seus filmes anteriores, mas aposta acertadamente nas sensações em detrimento da manipulação sentimental.

E é a opção de Steve McQueen em fugir da manipulação o grande diferencial de seu filme. Por ser negro - e consequentemente ter uma ligação bastante emocional com o tema da obra - seria previsível que McQueen se deixasse levar pela tendência a enfatizar o lado físicamente cruel da narrativa, forçando o espectador a emocionar-se com uma música redundante e interpretações exageradas. Seguindo o caminho oposto, ele prefere documentar a história sem subterfúgios outros que não o absurdo da situação, acreditando - acertadamente - que não é necessário aumentar o que já é sofrido o suficiente. A tática dá certo? Sim e não. Sim porque oferece mais ao público do que o esperado em termos de qualidade narrativa. Não porque talvez esse mesmo público - mal-acostumado que está - tivesse em mente mais um espetáculo de sadismo do que um libelo delicado à liberdade.

E não dá para falar de "12 anos de escravidão" - e louvar suas inúmeras qualidades - sem mencionar o elenco excepcional escalado por Steve McQueen. Chiwetel Ejiofor, até então um ator relegado a papéis coadjuvantes em filmes grandes ("Simplesmente amor" e "2012") ou papéis importantes em filmes bons pouco vistos ("Coisas belas e sujas") entrega uma performance silenciosa e expressiva no papel de Solomon Northup, um homem determinado a encarar seu destino sem deixar-se perder a dignidade de ser humano - mesmo diante de atrocidades e golpes baixos. A estreante Lupita Nyong'o dá um show como a desesperada Patsey, objeto de desejo de seu senhor - e por isso mesmo alvo da ira de sua senhora - em pelo menos uma grande cena. E, se o elenco masculino conta ainda com bons momentos de Paul Dano e a presença do produtor Brad Pitt, é novamente Michael Fassbender (em seu terceiro trabalho com o diretor) quem rouba todas as cenas em que aparece. Como o cruel Edwin Epps, o ator alemão comprova seu imenso talento em um personagem a anos-luz de distância de seu militante de "Hunger" ou o viciado em sexo de "Shame". Basta que apareça em cena para que Fassbender convença a audiência de sua maldade inerente. Não é pouca coisa.

No final das contas, "12 anos de escravidão" é um grande filme, contado com elegância e emoção nas medidas certas e que tem a ousadia de manter o estilo de seu diretor mesmo que ele não seja o que a grande massa espera. Vai fazer história, independente de ser premiado com o Oscar ou não.

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MACHETE MATA

Posted by Clenio on 21:09 in
Quando Robert Rodriguez inventou o personagem Machete para um trailer fictício a ser exibido antes de seu "Planeta Terror" - uma das partes do programa duplo do malfadado "Grindhouse", que criou ao lado de Quentin Tarantino - jamais poderia imaginar que a criatura fosse transformar-se em um ícone do cinema de ação trash que o projeto emulava. Interpretado por Danny Trejo - por si mesmo um baluarte do gênero, com seu rosto inconfundível e inexpressivo - Machete é um imigrante mexicano que, conforme o apelido deixa claro, tem como seu maior talento o uso de facão e não hesita em eliminar quem atrapalha suas missões de vingança, seduzindo todas as mulheres que encontra no caminho. Levando-se em consideração o absurdo disso tudo, é de admirar que alguém ainda leve a sério a brincadeira de Rodriguez a ponto de querer ver nela resquícios de algo que não seja o mais puro nonsense.

Assim como no primeiro capítulo, "Machete mata" não busca o realismo, oferecendo à audiência um festival de inverossimilhanças visuais e temáticas com resultados irregulares. Enquanto a participação de Charlie Sheen (assinando seu nome verdadeiro, Carlos Estevez, e sendo anunciado como estreante) soa divertida, assim como a participação especial de Lady Gaga - que parece estar saindo direto de um de seus bizarros videoclipes - nem sempre as piadas funcionam a contento. As múltiplas personalidades do vilão Mendez (o indicado ao Oscar por "Uma vida melhor" Demian Bichir), por exemplo, parecem mais uma forma de explorar o talento de seu intérprete do que servir à história, que é de uma pobreza extremamente apropriada às intenções de Rodriguez. Mas é impossível ficar indiferente a um filme que traz Mel Gibson como um vilão insandecido e Sofia Vergara como a dona de um bordel: eles, assim como o resto do elenco, simbolizam o que o filme tem de melhor.

É impossível negar que "Machete mata" é inferior ao primeiro filme, que tinha um frescor e um senso de ritmo mais adequado. Um tanto cansativo em seu terço final, esse segundo capítulo das aventuras do mais surpreendente herói do cinema de ação americano deve agradar apenas aos fãs do personagem e do estilo trash de Robert Rodriguez. Mesmo assim, é quase certo que um terceiro episódio está a caminho, conforme anuncia o trailer falso apresentado no início da projeção.

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BLUE JASMINE

Posted by Clenio on 16:10 in
Jasmine é uma mulher sofisticada, delicada e acostumada com os luxos da vida que levava ao lado do marido, com viagens ao exterior, festas opulentas e roupas de grife. Quando ela perde tudo, devido a falcatruas que o levam direto à cadeia, não lhe resta outra alternativa senão deixar Nova York e voltar à São Francisco, onde vai morar com a irmã adotiva, separada, mãe de dois filhos pequenos e com um estilo de vida totalmente diferente - leia-se pobre - do que está acostumada. Crente de que poderá recomeçar a vida como decoradora de interiores, a iludida Jasmine mergulha cada vez em um desequilíbrio mental que a impede de perceber a vida como ela é na verdade.

Com ecos nítidos da Blanche Dubois de "Um bonde chamado desejo", Jasmine é a mais trágica das heroínas criadas pelo cineasta Woody Allen e dá título a um de seus mais apaixonantes filmes. "Blue Jasmine" deu a Cate Blanchett o Golden Globe de melhor atriz dramática e tem tudo para repetir o feito na cerimônia do Oscar. Nada mais justo. Com uma interpretação nunca aquém de esplêndida, Blanchett carrega o filme nas costas - mesmo que o restante do elenco também esteja em dias inspirados, principalmente Sally Hawkings, que vive sua irmã, Ginger, uma mulher incapaz de sobreviver sem uma escora masculina, o que a leva aos braços de homens descritos pela socialite falida como perdedores. Enquanto Jasmine, do alto de sua autoestima que beira a arrogância vê nos namorados da irmã modelos desprezíveis de parceiros, Ginger os aceita sem maiores perguntas, entregue à sua pouca exigência - e às mágoas profundas que guarda escondidas sob um manto de despreocupação.

Com um roteiro que alterna presente e passado - que jogam luz, aos poucos, nas circunstâncias que reaproximam Jasmine de sua irmã e de uma vida menos fácil em termos financeiros - Woody Allen volta a mostrar os motivos que fazem dele um dos mais destacados realizadores americanos. Com cenas diretas e sem floreios, Allen conduz o espectador a uma viagem sem volta rumo à loucura de Jasmine, perdida em um turbilhão de sentimentos contraditórios e nostálgicos que a fazem evitar a realidade. Seu encontro com um homem que pode lhe devolver a sanidade e os dias de fartura e amor (interpretado pelo sempre competente Peter Sarsgaard) surge como uma tábua de salvação, mas nem mesmo ele desperta na protagonista mais do que uma inevitável tendência à autossabotagem representada por uma série de mentiras que a distanciam da felicidade.

Inteligente, forte e denso, "Blue Jasmine" é Woody Allen dos melhores, interpretado por um Cate Blanchett no auge do talento, capaz de segurar todas as nuances de uma personagem complexa sem nunca deixar que ela caia na autocomiseração. Bravíssimo! E que venha o merecido Oscar.

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RUSH, NO LIMITE DA EMOÇÃO

Posted by Clenio on 18:38 in
O diretor Ron Howard tem uma forte tendência a recriar, em seus filmes, histórias reais de superação e/ou rivalidade. Foi assim em "Apollo 13", "Uma mente brilhante", "A luta pela esperança" e "Frost/Nixon". É assim também em "Rush, no limite da emoção", que ilumina a rivalidade levada às raias da obsessão entre os pilotos de Fórmula 1 James Hunt e Niki Lauda concentrando sua narrativa na emocionante temporada de 1976. Contando com um roteiro enxuto e direto de Peter Morgan - autor dos scripts de  "O aviador", "A rainha" e "Frost/Nixon", entre outros menos cotados - o filme de Howard é uma aula de narrativa visual, que consegue conquistar a admiração e a atenção até mesmo daqueles que veem o esporte de Senna com absoluta indiferença.

Apesar de começar sua narrativa quando os protagonistas ainda estão engatinhando na Fórmula 3 - até como forma de estabelecer a idade de sua rivalidade, concentrada basicamente em seus diferentes modos de ver a carreira e lidar com a pressão das montadoras - "Rush" tem o bom senso de não tentar contar toda a história de vida dos dois pilotos, preferindo ater-se à tensão da temporada 1976, quando sua briga atingiu o auge. Contando sua história com imagens poderosas e uma edição impecável, Howard equilibra com perfeição os momentos mais pessoais dos protagonistas - como suas relações matrimoniais - com sequências abismais de corrida fotografadas como nenhuma outra até hoje, que praticamente leva o espectador para o meio das pistas. O realismo das cenas é um dos maiores méritos do filme, que, além disso, não deixa de lado a construção dramática de seus personagens, o que dá a seus atores chances extraordinárias de mostrar serviço.

Se Chris Hemsworth consegue deixar pra trás seu Thor em um trabalho bastante eficiente - apesar de seu James Hunt ser extremamente apropriado a seu físico e à persona que ele vem construindo em sua carreira - é Daniel Bruhl quem brilha na pele do rígido e focado Niki Lauda, um homem obcecado com sua profissão a ponto de arriscar a vida para provar seu talento. Provável indicado ao Oscar de coadjuvante - apesar de ser tão protagonista (ou mais) quanto Hemsworth - Bruhl está irreconhecível sob a maquiagem que o transforma no piloto austríaco e não tem medo de retratá-lo como alguém quase desagradável, em especial diante do carisma de Hunt. Sempre que estão juntos em cena, os dois atores fascinam o público, com uma química de causar faíscas que é bastante valorizada pelos ótimos diálogos de Morgan.

A rivalidade entre os dois - que remete, guardadas as devidas proporções, ao multi-premiado "Amadeus", de Milos Forman, que falava sobre Mozart e Salieri - é o ponto alto de "Rush". É sua discussão sobre as diferentes formas com que os gênios lidam com seus dons que move o filme, que permanece na memória do espectador como o melhor retrato da Fórmula 1 já mostrado no cinema. Mesmo que o final da história seja conhecido - ou de fácil acesso em tempos de Internet - é impossível tirar os olhos da tela. Graças ao conjunto de qualidades, é um dos melhores filmes da temporada Oscar.

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FRANCES HA

Posted by Clenio on 19:59 in
Woody Allen encontra a Nouvelle Vague. O que parece no mínimo improvável é o que acontece em "Frances Ha", novo filme do cineasta independente Noah Baumbach, conhecido pelos dramas familiares "A lula e a baleia" e "A família Savage". Dessa vez com uma abordagem menos densa - mas nem por isso menos melancólica sob sua superfície descolada - Baumbach usa vários elementos do movimento do cinema francês dos anos 60 para contar a história de uma jovem comum buscando seu lugar no mundo - uma das principais diretrizes das obras de cineastas como Truffaut e Godard, que viravam suas câmeras para anti-heróis que tinham como principal qualidade a normalidade. Frances, a protagonista interpretada pela co-roteirista Greta Gerwig, é simples em suas atitudes, mas conquista a simpatia do espectador justamente por isso.

Trabalhando em uma companhia de dança - na qual pretende se estabelecer como professora, apesar de não ter talentos especiais para isso - e dividindo um apartamento com a melhor amiga, Sophie (Mickey Sumner), com quem mantém uma relação de adoração e plena confiança, Frances não é espetacularmente dotada, não é linda, luta com suas finanças e é quase frustrada profissionalmente. Depois de terminar um namoro não particularmente caloroso por não querer abandonar Sophie, ela vê sua rotina alterada quando é a amiga que lhe deixa sozinha, preferindo morar em outro bairro. Enquanto pula de casa em casa tentando encontrar um lugar para encaixar-se, ela busca também encontrar-se como pessoa, nunca perdendo, porém, seu jeito próprio e leve de encarar os problemas.

Fotografado em um preto-e-branco que tanto cria a nostalgia buscada pelo diretor como remete mais uma vez à nouvelle vague, "Frances Ha" tem na simplicidade uma de suas maiores qualidades. O roteiro é direto, fácil e objetivo, com um senso de humor inteligente e sutil, mesmo quando entra no terreno complexo dos relacionamentos interpessoais - daí a comparação ao cinema de Woody Allen. Frances é engraçada, desajeitada e romântica em sua busca quixotesca por uma felicidade que nem ela mesma sabe onde está, o que facilita muito a empatia do público. Interpretada por uma promissora Greta Gerwig - que usa em sua personagem muito de sua própria personalidade, como a cidade natal - é uma personagem encantadora como há muito o cinema americano não apresentava e a indicação de Gerwig ao Golden Globe de melhor atriz em comédia/musical é apenas o primeiro passo em direção a uma bela carreira.

No final das contas é impossível não se deixar seduzir pela beleza singela e delicada de "Frances Ha", uma pequena - menos de 90 minutos - mas intensa pérola que é o melhor filme de Baumbach justamente por não ter grandes pretensões.

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AZUL É A COR MAIS QUENTE

Posted by Clenio on 18:24 in
Nada como uma boa polêmica (ou mais de uma) para que um filme como "Azul é a cor mais quente" - que de outra forma teria sua audiência restrita a fãs de festivais de cinema e ao público alternativo de cinema de temática gay - consiga atingir o espectador médio. Vencedora da Palma de Ouro de Melhor Filme no Festival de Cannes de 2013 - que pela primeira vez premiou, além do diretor, suas duas atrizes centrais - a obra de Abdellatif Kechiche provocou controvérsias que, de certa forma, eclipsaram suas inúmeras qualidades. Desde a forma como Kechiche tratou suas estrelas - de forma cruel e exaustiva, segundo as próprias - até as longas sequências de sexo - bastante gráficas e muito mais ousadas do que o que normalmente se vê no cinema mainstream, mas muito longe de ser pornográficasMesc - tudo serviu para que até o mais desinformado frequentador das salas de exibição tivesse a curiosidade aguçada. Com esse marketing involuntário, o filme corre o sério risco de ser mais lembrado por suas cenas eróticas do que por sua história, forte e realista. É preciso, então, separar o joio do trigo.

Logicamente muito do público que correr aos cinemas irá fazê-lo para conferir o embate carnal entre as duas atrizes, Léa Seydoux e Adéle Exarchpoulos - cuja personagem tem seu mesmo nome para conferir mais realismo às cenas, muitas delas registradas quando a atriz estava fora de cena. Quantas pessoas desse público, porém, terão a sensibilidade suficiente para, por trás disso, enxergar o que realmente importa no roteiro, baseado no romance gráfico de Julie Maroh? "Azul é a cor mais quente" é muito mais do que a história de uma adolescente descobrindo o amor e a homossexualidade. É a história de uma mulher despertando para a vida, buscando desesperadamente um ponto de apoio sentimental e o lugar adequado para colocar o desejo. Ao contrário do apregoado pelos detratores, as cenas de sexo não são gratuitas e apelativas: elas servem perfeitamente à trama, estabelecendo desde o princípio a base carnal, passional e telúrica do relacionamento entre as duas jovens.

O título original do filme - "A vida de Adèle, capítulos 1 e 2" - deixa clara a intenção do diretor em contar, de forma simples e direta, episódios específicos da vida de sua protagonista, como se fosse parte de um diário. É compreensível, então, sua opção em realizar quase dois filmes em um: a primeira metade acompanha as descobertas da adolescente Adèle, que, encantada pela inteligência e charme de Emma (Seydoux) - uma estudante de Belas Artes dona de um estiloso cabelo azul - se envolve em um relacionamento que lhe proporciona calor e prazer, ao mesmo tempo em que a insere em um mundo muito distante do seu. O romance entre as duas dá um salto na segunda metade, quando, morando juntas, elas enfrentam os problemas da rotina e a decadência do desejo. Trabalhando como professora primária, Adèle sente-se deslocada entre os amigos artistas de Emma, o que acaba resultando em uma crise quase incontornável.

Mesclando suas cenas românticas com longos discursos sobre arte e filosofia - nunca forçados ou exageradamente eruditos - Kechiche conta sua história sem pressa, concentrando-se na fisionomia de Adèle Exarchpoulos para transmitir todas as sensações que pretende. A jovem atriz, por sua vez, não deixa a desejar, entregando um desempenho corajoso e cru que justifica seu prêmio em Cannes - assim como Lea Seydoux, que transmuta sua doce e sedutora Emma da primeira fase em uma mulher pragmática e madura na segunda sem precisar utilizar mais do que seu talento. A opção do diretor em ignorar momentos que poderiam ser cruciais - a saída do armário de Adèle ou a maneira com que ela revida à indiferença da parceira - fazem do filme algo ainda mais especial, por respeitar a inteligência da plateia, fugindo do lugar-comum que faria de sua obra apenas mais um produto a explorar a temática homossexual. A crueza de sua filmagem - em contraponto à delicadeza dos sentimentos expostos pelas personagens - é provavelmente o ponto alto de um filme que, mais do que controverso, é dolorosamente real.

"Azul é a cor mais quente" se presta a diversas discussões - a respeito de sua estrutura, sobre os atos das personagens (que agem como pessoas normais e não arquétipos baratos), sobre a ousadia de suas cenas de sexo, sobre o retrato do mundo gay. Mas, acima de tudo, é cinema vivo. Chacoalha, emociona e quase incomoda. Há quanto tempo um filme não faz isso?

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O MORDOMO DA CASA BRANCA

Posted by Clenio on 19:38 in
Alguns filmes conquistam por seu valor artístico, por sua ousadia, criatividade e técnica impecável. Outros, no entanto, chegam ao coração da audiência por seus méritos emocionais, que prescindem de teorias ou análises mais profundas. Na segunda definição encontra-se "O mordomo da Casa Branca", novo filme do cineasta Lee Daniels depois do fracassado "Obsessão" - que decepcionou até mesmo aos mais ardorosos fãs de "Preciosa", estreia do cineasta, que lhe deu, de cara, uma indicação ao Oscar de direção. Inspirado em uma história real, o filme de Daniels retrata, em pouco mais de duas horas de duração, cinco décadas da história dos EUA, concentrando-se na luta pelos direitos civis da população negra - e contrapondo-a à dedicação do protagonista em servir os governantes do país independentemente da situação política.

Interpretado por Forest Whitaker em mais uma atuação esplêndida, Cecil Gaines é um herói silencioso e discreto, que acompanha as transformações sociais dos EUA de camarote: contratado como um dos mordomos da Casa Branca durante o mandato de Eisenhower (Robin Williams), ele segue à risca os conselhos que sempre recebeu durante sua educação como serviçal, mantendo-se invisível e apolítico mesmo quando as decisões políticas afetam diretamente seu povo - e principalmente sua família. Seu filho mais velho, revoltado com a submissão a que a população negra é obrigada, junta-se aos ativistas que exigem mudanças - desde o pacifismo de Martin Luther King à violência dos Panteras Negras -, seu caçula, crédulo em seu governo, embarca para o Vietnã, e sua mulher, Gloria (Oprah Winfrey, extraordinária) se entrega à bebida como forma de lidar com a solidão. Muitas vezes incompreendido pelas pessoas que ama - que o julgam conivente com as desigualdades - ele não se furta a manter-se fiel às suas obrigações, o que acaba por torná-lo um homem de confiança de inúmeros presidentes.

A narrativa de Daniels é quadradinha, convencional, quase sem brilho. Porém, se o roteiro muitas vezes não consegue fugir do superficial - consequência inevitável da decisão de se contar tanta coisa em tão pouco tempo - ao menos mantém um ritmo que mantém a atenção do espectador sem fazer muito esforço. Didático na medida certa (para não afugentar aqueles que não conhecem a história americana a ponto de não precisar de legendas explicativas) e emocionante em diversos momentos - principalmente quando não tem medo de mostrar a extrema violência física e psicológica sofrida pelos negros - o filme pode até ser acusado de um certo maniqueísmo, mas tem a coragem de questionar a lealdade do protagonista ao mesmo tempo em que compreende sua ideologia de fidelidade extrema e absoluta: a cena em que pai e filho discutem violentamente sobre a imagem de Sidney Poitier (epítome do negro quase branco, aceito pelo mainstream americano nos anos 60 e renegado pelo ativismo radical justamente por esse motivo) é forte e exemplifica com perfeição a dubiedade dos sentimentos da família Gaines - além de permitir a Whitaker e Winfrey um de seus melhores momentos.

Aliás, se existe um outro grande motivo para se assistir a "O mordomo da Casa Branca" é o elenco reunido por Daniels: além de Mariah Carey (em uma participação mínima) e Lenny Kravitz - que já haviam trabalhado com o diretor em "Preciosa", o filme é um desfile de grandes atores em participações especiais (e muitas vezes com maquiagem que quase os deixa irreconhecíveis). É um prazer à parte ver nomes tão díspares quanto Alan Rickman, James Marsden, Liev Schreiber, John Cusack, Vanessa Redgrave, Cuba Gooding Jr., Terrence Howard e a sumida Jane Fonda em um filme com importância social tão fundamental - e não é difícil imaginar que sua inclusão no elenco tem muito a ver com suas próprias agendas políticas.

"O mordomo da Casa Branca", ao contrário do apregoado, não tem nada a ver com "Histórias cruzadas", o superestimado que deu a Octavia Spencer o Oscar de atriz coadjuvante há dois anos. Enquanto a obra de Tate Taylor era hipócrita a ponto de ter uma protagonista branca para salvar os negros oprimidos, o filme de Daniels dá aos próprios o poder de mudar sua história, lutando até o fim por seus direitos e enfrentando o sistema estabelecido. E se havia espaço para o humor escatológico e sem graça no primeiro, em "O mordomo" o registro é mais sério e apropriado ao tema. Pode não ser uma obra-prima, mas é comovente, relevante e redondinho. Merece ser apreciado por suas inúmeras qualidades.

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SOBRENATURAL - CAPÍTULO 2

Posted by Clenio on 18:44 in
Depois do sucesso-surpresa de "Invocação do mal" - um dos maiores êxitos de bilheteria de 2013 - o diretor James Wan e o roteirista Leigh Whannel ficaram cheios de moral. Tida como a responsável pela ressurreição dos filmes de terror sérios desde que seu "Sobrenatural" rendeu mais de 50 milhões de dólares - contra um orçamento diminuto de 1 milhão e meio - a dupla resolveu capitalizar em cima do prestígio adquirido seguindo o caminho mais fácil para isso: uma continuação. Infelizmente, "Sobrenatural - Capítulo2" não apenas falha em repetir o clima e os sustos do filme original como consegue estragar uma ideia excelente com um roteiro confuso, uma edição preguiçosa e uma história que, ao invés de apavorar, apenas dá sono.

O final do primeiro "Sobrenatural" não deixava dúvidas de que uma continuação estava por vir - o que por si só não chega a ser um demérito, uma vez que finais em aberto já são ingredientes comuns em filmes do gênero. O problema é que o roteiro da segunda parte praticamente trata o público - e a protagonista vivida por Rose Byrne - como idiotas. Sem estragar o prazer de quem não assistiu ao filme original - que faz uma justa e competente homenagem aos clássicos de terror dos anos 80, em especial "Poltergeist, o fenômeno" - basta dizer que a revelação de sua última cena é virtualmente ignorada. O roteiro prefere seguir um caminho distinto do esperado, dando mais importância à dupla de caça-fantasmas atrapalhados liderada pelo autor da trama, Leigh Whannell, do que ao suposto personagem central, Josh (interpretado por um Patrick Wilson deslocado e subaproveitado), a quem só resta ficar fazendo caras e bocas.

Enquanto o "Sobrenatural" lançado em 2010 não abria mão de criar um clima que fazia o espectador pular da poltrona a cada cinco minutos, sua segunda parte se arrasta indefinidamente sem proporcionar um único momento de real tensão. A subtrama - que conta as origens de um fantasma reprimido na infância pela mãe castradora - não empolga principalmente porque soa mais como uma forma de apontar uma sobrevida à série (uma spin/off com os malfadados caçadores de ectoplasma) do que exatamente um elemento importante à história da família. Não há equilíbrio entre as duas narrativas do filme, ambas enfadonhas e previsíveis, e seu desenvolvimento é enfadonho e arrastado - além de nunca envolver o público, que acaba tendo dificuldade em acompanhar as idas e vindas do que se convencionou chamar de "mundo dos sonhos" na mente dos roteiristas.

É inevitável que um terceiro "Sobrenatural" venha por aí. Mas, a julgar por seu aborrecido segundo capítulo servirá apenas para encher os bolsos de seus criadores e não para agradar os fãs de um bom filme de terror.

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LENNYS AWARD 2013

Posted by Clenio on 23:05 in
Como acontece desde 1993 - quando ir ao cinema passou a ser uma absoluta constante na minha vida, uma vez que vim morar em Porto Alegre, abandonando o interior tedioso - fiz uma lista dos maiores destaques da programação da sétima arte do ano que passou. Tento fugir dos vencedores do Oscar porque o Lennys Award surgiu exatamente para corrigir uma injustiça da Academia - "Drácula de Bram Stoker", até hoje meu recordista em prêmios (7 na primeira edição), empatado com "Moulin Rouge", de 2001 - mas às vezes é impossível. Porém, pela primeira vez em todas as suas edições, o Lennys Award 2013 não concordou com o Oscar em nenhuma categoria. O grande vencedor do ano foi o injustiçado "O impossível", vencedor de quatro prêmios. Segue abaixo a lista dos vencedores.

FILME - O impossível (The impossible)
DIRETOR - A. J. BAYONA - O impossível
ATOR - MICHAEL DOUGLAS - Minha vida com Liberace
ATRIZ - EMANUELLE RIVA - Amor
ATOR COADJUVANTE - TOM HOLLAND - O impossível
ATRIZ COADJUVANTE - HELEN MIRREN - Hitchcock
ROTEIRO ORIGINAL - O IMPOSSÍVEL (Sérgio G. Sanchez)
ROTEIRO ADAPTADO - AS AVENTURAS DE PI
FOTOGRAFIA - ANNA KARENINA (Seamus McGarvey)
MONTAGEM - ANNA KARENINA (Melanie Ann Oliver)
TRILHA SONORA ORIGINAL - A VIAGEM (Reinhold Hill, Johnny Klimek, Tom Tykwer)
CANÇÃO - "ALMOST HOME" - Oz, mágico e poderoso
FIGURINO - ANNA KARENINA (Jacqueline Durran)
DIREÇÃO DE ARTE & CENÁRIOS - O GRANDE GATSBY
MAQUIAGEM - A VIAGEM
EFEITOS VISUAIS - GUERRA MUNDIAL Z
SOM - GUERRA MUNDIAL Z

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CHARLIE COUNTRYMAN

Posted by Clenio on 00:51 in
Enquanto não entra em cartaz com o esperado "Ninfomaníaca", de Lars Von Trier, o ator Shia LaBeouf continua em seu esforço para mostrar que por trás do jovem que ficou famoso com as tranqueiras da série "Transformers" existe um ator ousado e talentoso. Deu passos certos nessa direção com "Os infratores", de John Hillcoat e com "Sem proteção", de Robert Redford. No meio do caminho - mas com mais qualidades que defeitos - está "Charlie Countryman", um estiloso drama policial em que ele deixa de lado a vaidade para viver um protagonista romântico atípico e errático que se vê envolvido em uma trama violenta e perigosa enquanto tenta conquistar a mulher por quem está apaixonado.

A trama não é das mais criativas, apesar do início promissor: Charlie é um jovem que, logo após a morte da mãe (participação especial da sempre ótima Melissa Leo), recebe dela o conselho para deixar o país e fixar-se em Bucareste. Sem pensar muito, o rapaz acata as ordens da falecida progenitora e embarca no primeiro avião, onde conhece o simpático Victor Ibanescu (Ion Caramitru), que, para seu azar, morre logo em seguida - e, depois de morto, pede que ele dê um recado e um presente à sua filha, Gabriela (Evan Rachel Wood, quase irreconhecível). Para cumprir o desejo de seu companheiro de viagem, Charlie chega até a jovem, se apaixona por ela e descobre que ela foi casada com um criminoso cruel, Nigel (Madds Mikelsen, da série "Hannibal" e do filme "A caça"). Disposto a salvá-la das mãos do ex-marido, o rapaz se mete em uma série de situações perigosas - que ao mesmo tempo o aproximam e afastam da garota.

A maior qualidade de "Charlie Countryman" está no visual criativo imposto pelo cineasta Fredrick Bond - provavelmente herança de seu trabalho como diretor do videoclipe "Bodyrock (Auditions)", de Moby. Utilizando-se de cores quentes e uma edição ágil, Bond, estreando em longas-metragens, imprime a sua obra uma identidade própria, que o afasta do lugar-comum que a teria assassinado. Intercalando sequências estilisticamente festivas - como a cena em que o protagonista tem delírios visuais depois de ingerir drogas - com outras francamente secas e diretas - em especial as mais violentas - Bond permite ao espectador que entre na história juntamente com os personagens, rejeitando o distanciamento que normalmente acompanha os filmes do gênero. Mesmo que o roteiro muitas vezes caia no banal, sua direção e o esforço de LeBeouf em lhe dar credibilidade são bastante louváveis.

"Charlie Countryman" não é um filme capaz de marcar a vida de um cinéfilo. Mas é, sem dúvida, uma amostra (mais uma) da dedicação de seu ator central em sair da zona de conforto e se arriscar em projetos mais sérios. Só isso já vale uma espiada.

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COMO NÃO PERDER ESSA MULHER

Posted by Clenio on 19:00 in
Em "Sintonia de amor", a personagem central, vivida por Meg Ryan, reclamava dos estragos causados pelo cinema romântico hollywoodiano, que faz com que as mulheres busquem histórias de amor ilusórias em detrimento da realidade. Clássico do cinema pejorativa - e erroneamente - chamado de "filme de mulherzinha", a obra de Nora Ephron encontra em "Como não perder essa mulher" sua versão masculina, guardadas as devidas proporções. Estreia como diretor do ator Joseph Gordon-Levitt, que também interpreta o papel central, o filme substitui os romances de plástico de Hollywood por filmes pornográficos, as mocinhas sonhadoras por um bartender hedonista e transmuta o santo graal dos protagonistas de um amor verdadeiro em uma satisfatória vida sexual.

Jon, o protagonista que Gordon-Levitt escreveu para Channing Tatum - que faz uma participação afetiva e bastante engraçada ao lado de Anne Hathaway - e depois pegou para si, é um jovem bartender que divide suas noites em um curso profissionalizante e noitadas em baladas que sistematicamente acabam em insatisfatórias relações sexuais. Conquistador inveterado, ele não hesita em reconhecer a si mesmo - e ao padre com que frequentemente se confessa - que prefere masturbações frequentes diante de filmes pornográficos do que sexo propriamente dito. Segundo sua concepção, as mulheres são sempre desapontamentos, por não realizarem na vida real o que os filmes adultos prometem em suas cenas pra lá de quentes. Seu vício em pornografia não se revela problemático, porém, até que ele conhece e cai de amores por Barbara (Scarlett Johansson, vivendo pela enésima vez a mulher sexy que parece ser seu único talento). Aparentemente um vulcão, Barbara se revela uma mulher extremamente conservadora, que mais uma vez frustra suas expectativas de orgias alucinantes. Surge então Esther (Julianne Moore), uma mulher mais velha, com uma trágica história de vida, que acaba lhe mostrando um outro caminho a seguir.

A ideia do roteiro de Gordon-Levitt é ótima, afinal de contas falta ao cinema hollywoodiano filmes com pontos de vista masculinos a respeito de relações amorosas. O problema é que falta a ele um pouco mais de profundidade, em especial na relação entre Jon e Esther, que poderia ter sido explorada com menos pressa - o que poderia inclusive ter dado à sempre ótima Julianne Moore maior oportunidade de brilhar. O jovem ator demonstra personalidade em sua direção, fazendo uso inteligente da edição e da trilha sonora e demonstrando bom senso estético - além de proporcionar à Glenne Headley ótimos diálogos na pele de sua mãe desesperada por uma nora e conseguir se dividir entre a direção e a protagonização com segurança de veterano: a transformação de seu Jon, que em mãos menos talentosas poderia soar patética, com ele não é apenas crível, mas também encantadora.

No final das contas, "Como não perder essa mulher" é uma estreia competente, que aponta para Joseph Gordon-Levitt uma carreira promissora.

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