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INQUIETOS

Posted by Clenio on 18:47 in
Ele se chama Enoch Brae e, órfão de pai e mãe por obra de um desastre de automóvel que o deixou em coma por três meses, tem por hábito frequentar funerais de desconhecidos como forma inconsciente de exorcisar sua constante melancolia. Ela é Annabel Cotton, uma jovem inteligente, sensível e etérea que, apesar da pouca idade já tem os dias contados devido a um tumor cerebral incurável. Um belo dia eles se encontram em um velório e tornam-se amigos. Ela não questiona o fato do rapaz conversar com o fantasma de um piloto kamikaze morto em ação e ele aceita pacificamente a ideia de que a vida de sua melhor amiga tem data para acabar. Aos poucos a relação entre os dois ultrapassa os limites da amizade e eles se apaixonam, mesmo sabendo que sua história de amor está fadada à tristeza.

Se o breve resumo da sinopse do novo filme do outrora transgressor Gus Van Sant - que depois de empolgar a crítica com seus "Drugstore Cowboy" e "Garotos de Programa" foi engolido pela máquina hollywoodiana a ponto de concorrer duas vezes ao Oscar - lhe fez descartá-lo, pense mais um pouco. Apesar da premissa um tanto deprê, "Inquietos" é um sensível e delicado drama romântico que não apela para o chororô melodramático. Contado de forma suave e poética, é, talvez, a melhor e mais singela história de amor contada pelo cinema neste ano de 2011, dotada de uma pureza juvenil cada vez mais rara nesse cínico século XXI.

Embalado pela doce trilha sonora de Danny Elfman, "Inquietos" não é apenas a trágica história de dois jovens que lidam com a morte de maneira estoica (cada um a seu jeito): é principalmente uma ode à vida, uma homenagem aos pequenos momentos, a cada sorriso, a cada toque, a cada pingo de chuva. Apesar de estarem em um momento crucial e devastador de suas vidas, Enoch e Annabel não encontram tempo para lamentos e lágrimas. Jovens e quase pueris em sua paixão, eles preferem utilizar o tempo que lhes resta juntos da maneira mais positiva possível (e nem mesmo planejar seu funeral tira o bom humor da garota, vivida com uma encantadora sutileza por Mia Wasikowska). O romance entre os dois não soa artificial nem urgente, surgindo passo a passo, de maneira gradual e verdadeira e conquista a audiência principalmente por sua inocência, representada de maneira apaixonante por sua dupla central.

Se Mia Wasikowska já tem um currículo respeitável apesar da pouca idade - já foi vista em "Alice no País das Maravilhas" e "Minhas Mães e Meu Pai", só para citar os mais conhecidos - o novato Henry Hopper (filho do saudoso Dennis) faz uma auspiciosa estreia na pele do inseguro, tímido e desconfortável Enoch. Dono de traços delicados, o jovem Hopper transmite com facilidade as nuances de sua personagem, ainda que esteja longe de ser um ator admirável (o que ele pode se tornar com o tempo, como demonstra aqui). A química entre os dois é formidável e é difícil não se deixar emocionar com algumas de suas cenas, principalmente devido à naturalidade de suas atuações e a seu final arrebatador (que felizmente abdica das lágrimas fáceis).

"Inquietos" pode até não ser criativo e ousado como os primeiros filmes de Gus Van Sant, mas é um alívio perceber que seus tempos de "Encontrando Forrester" parecem ter ficado definitivamente para trás.

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AS CANÇÕES

Posted by Clenio on 08:37 in
Se não houvesse músicas, como as pessoas se lembrariam de partes de sua vida? Essa é a questão levantada por Queimado, um dos participantes do belo documentário "As canções", dirigido pelo experiente Eduardo Coutinho e de certa forma é uma razão para que o filme tenha sido feito: com seu talento incomum de arrancar de seus entrevistados depoimentos emocionantes e verdadeiramente humanos, Coutinho apresenta ao público 18 histórias comoventes sobre amor, tendo como elo de ligação o fato de todas terem uma canção-tema. São pessoas desconhecidas, simples e muitas vezes sem maiores instruções que dão um show de sinceridade e até bom-humor em certos casos. Mais uma vez o cineasta veterano de "Cabra marcado para morrer" acerta em cheio.

A estrutura de "As canções" lembra um pouco a de "Jogo de cena", brilhante documentário que contou com Andrea Beltrão, Marília Pêra e Fernanda Torres, entre outras: o entrevistado entra em um cenário escuro, sem nada mais do que uma cadeira e conta sua história, intercalando-a com a música que a marcou. Desfilam pela tela histórias trágicas e felizes, entre maridos e esposas, entre pai e filho, entre amantes... Em todas elas existe o elemento da paixão, do arrependimento, do amor quase irracional. Em todas elas a audiência se reconhece (se não ao todo ao menos em parte). Em todas elas o ser humano (material de supremo interesse do documentarista) é o astro central, dividindo o palco com sua trilha sonora particular. Em todas elas há aquilo que faz da obra de Coutinho tão especial: seu carinho pelo ser humano.

Característica central da filmografia de Eduardo Coutinho, sua paixão pelas pessoas fica patente em "As canções": enquanto suas "personagens" estão em cena é difícil não se envolver, não ser tocado, não compreender cada história, por mais distante que esteja do universo do espectador. Tudo é responsabilidade da capacidade do diretor em despertar a confiança absoluta do interlocutor, que sente-se como em um terapeuta. Lágrimas são constantes nos depoimentos, mas  ninguém parece se incomodar com esse devassar sentimental. Todos estão ali para dividir suas experiências. E esse jogo de compartilhamento de vida é arrebatador. Entre as músicas de Roberto Carlos, Jorge Benjor e Noel Rosa que são trilha sonora de vidas de gente como a gente, fica a certeza de que o amor não escolhe sexo, classe social ou idade para aparecer e fazer seus estragos. E é isso que faz de "As canções" um filme tão especial e caloroso. Imperdível!

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NOITE DE ANO-NOVO

Posted by Clenio on 11:22 in
Aproveitar datas comemorativas como pretexto para realizar filmes - e consequentemente ganhar dinheiro aproveitando o marketing gratuito que isso gera - é uma espécie de tradição em Hollywood. Mas se até recentemente apenas filmes de terror apelavam para o calendário em busca de ideias - vide as séries "Sexta-feira 13" e "Halloween" e o tenebroso "11/11/11" deste ano - ultimamente um outro gênero vem se apropriando do conceito. Aliás, mais precisamente um cineasta: Garry Marshall, que em 1990 deu a Julia Roberts sua grande chance para o estrelato em "Uma linda mulher". Ano passado ele lançou "Idas e vindas do amor", uma comédia romântica que foi execrada quase unanimemente a despeito de seu elenco milionário - que incluía a própria Roberts, assim como Bradley Cooper, Ashton Kutscher, Kathy Bates, Anne Hathaway e Jamie Foxx. No entanto, apesar das críticas negativas, o filme rendeu mais de 200 milhões de dólares mundo afora, o que encorajou o cineasta a partir para uma espécie de segundo capítulo de sua saga "romântico/comemorativa". "Noite de ano-novo" chegou aos cinemas americanos no dia 5 de dezembro e, como era de se esperar, foi novamente massacrado pela crítica.

Utilizando-se do artifício que fez a glória de Robert Altman - contar várias histórias paralelas de personagens aparentemente sem conexão alguma - "Noite de ano-novo" segue rigidamente a fórmula do filme anterior de Marshall, mesclando tramas engraçadinhas, dramáticas e românticas sem dar atenção especial a nenhuma delas (e consequentemente superficializando todas as relações mostradas, inclusive aquelas que poderiam render muito mais). Além disso, o cineasta insiste em tentar atingir públicos de todas as idades, pondo lado a lado atores respeitados e/ou oscarizados (Robert DeNiro, Michelle Pfeiffer, Hale Berry e Hilary Swank) e jovens promessas/ídolos adolescentes (Abrigail Breslin, Zac Efron, Lea Michelle). Para completar o elenco, figurinhas fáceis do gênero, como Katherine Heigl, Sarah Jessica Parker e Josh Duhamel e seu ator-fetiche, Hector Elizondo. Soma-se à receita uma trilha sonora moderna, histórias que não machucam ninguém e uma espécie de lição de moral a respeito de amor e perdão e o bolo está pronto. A questão é: esse bolo tão repleto de ingredientes deu liga?

É lógico que "Noite de ano-novo" está a anos-luz de filmes do mesmo estilo como o delicioso "Simplesmente amor", mas tampouco é algo a ser desprezado totalmente. Apesar de ser dramaticamente falho, consegue ser simpático a maior parte do tempo (inclusive quando obriga a plateia a escutar Jon Bon Jovi) e, mesmo que algumas das relações mostradas na tela não cheguem a convencer a plateia (principalmente pelo pouco tempo disponível para desenvolvê-las) não deixa de ser um alívio perceber que nem só de desenhos animados vive o cinema americano nessa época de festas. "Noite de ano-novo" cumpre o que promete (entreter sem compromisso), mas nunca vai além disso. Pode divertir aos menos exigentes.

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AQUELE COM OS MELHORES MOMENTOS...

Posted by Clenio on 08:31 in ,
Tem sorte quem tem dinheiro. Tem mais sorte ainda quem tem talento. Todos que tem saúde, beleza e inteligência são ainda mais abençoados. Mas sorte mesmo, daquelas que se deve agradecer todos os dias (para Deus, para o universo, para o que for) tem quem tem amigos de verdade. Não amigos para festas e gargalhadas, mas também para aqueles momentos negros onde o fim do mundo parece ser a única opção. Sendo assim, posso me sentir privilegiado, porque tenho (alguns e poucos, mas fiéis) bons amigos. E entre eles, encontra-se uma em especial, que, ano após ano foi conquistando um lugar de honra dentro do mundo um tanto caótico deste que vos escreve. Sim, Candy, este post é pra você....

Difícil é, dentre tantas ocasiões especiais que dividimos, escolher apenas um para representar o quanto nos divertimos por aí (e sofremos também, porque somos humanos acima de tudo...). Seria preciso um episódio especial duplo, algo intitulado "Aquele com os melhores momentos", onde o público teria que ver nossas aventuras em um curso de teatro, nossas sessões de "Imagem & Ação" (que ela transforma, ao seu estilo Monica Geller, em "Ação & Ação"), nossos porres domésticos, nossas tentativas de convencer os outros de que nosso souflé de chuchu é uma delícia (e acreditem ele é), nossas noites falando mal dos desafetos, nossas caminhadas pra emagrecer e nossos longos debates sobre religião e "Six feet under".

O episódio especial também teria que, necessariamente, incluir a ajuda que ela me deu na mudança de apartamento (sejamos justos, ela e o Valdir), a carona do aeroporto (em quase nos perdemos e fomos parar no litoral), minhas tentativas de convencê-la a gostar de Alanis Morissette e Marisa Monte (um dia ainda rola...), o ombro sempre pronto a aguentar minhas depressões amorosas, profissionais e existenciais, as histórias bizarras sobre o ambiente de trabalho que dividimos e a paixão por Gwyneth Paltrow e "Friends". Isso tudo sem falar na quantidade de vezes que ela desafia meu medo de cachorro e meus conhecimentos cinematográficos ("sabe o filme aquele, com a atriz aquela que foi casada com aquele outro ator?")

Candy é uma amiga de ouro, presente nos bons e maus momentos (e um dia seremos padrinhos de casamento um do outro). Juntos nós já rimos, já choramos, já dançamos, já nos embedemados, já pegamos lotação de madrugada e já odiamos a mesma pessoa. Mas o melhor de tudo é saber que ainda há muito que ainda não vivemos e que certamente iremos viver juntos, como bons e fiéis amigos. Sabe, até que realmente tenho sorte...

Happy birthday, baby!

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O GAROTO DA BICICLETA

Posted by Clenio on 20:45 in
Dá até medo de pensar o que um cineasta-padrão de Hollywood poderia fazer com um filme com esta premissa: menino abandonado pelo pai é deixado em um orfanato e é resgatado por uma cabeleireira solteira que tenta dar a ele um lar e carinho, mas que percebe que o senso de auto-destruição do garoto pode impedí-los de manter uma relação saudável. Nas mãos de um diretor qualquer, mais preocupado com o dinheiro e os Oscar que tal filme poderia render, nasceria mais um intragável dramalhão lacrimoso e piegas. Porém, para sorte de todo mundo, "O garoto da bicicleta" não é americano e sim um belo filme belga dirigido pelos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, que tem em mãos uma Palma de Ouro do Festival de Cannes graças a seu "A criança", de 2005.

No Festival de Cannes deste ano "O garoto da bicicleta" também não saiu de mãos vazias, tendo levado o Grande Prêmio do Júri, o que apenas reitera a qualidade do cinema dos dois irmãos que, de maneira sensível e discreta, contam histórias humanas e que revestem de delicadeza temas complicados e espinhosos como gravidez na adolescência e a delinquência juvenil. Suas personagens são complexas, com atitudes nem sempre louváveis mas frequentemente perdoáveis, o que as aproxima da plateia de maneira sutil mas definitiva. Não é a intenção de sua filmografia dar soluções e justificativas e sim emocionar e tocar o público naquilo que ele tem de mais honesto: os sentimentos.

É nítido, em "O garoto da bicicleta", que o olhar dos cineastas/roteiristas é apenas isso, um olhar. Sem julgamento de espécie alguma, eles apenas mostram ao espectador um momento crucial na vida do menino Cyrill Catoul (o ótimo Thomas Doret), que, rejeitado abertamente pelo pai e órfão de mãe, tem problemas para lidar com a violência que tem dentro de si. Carente e infeliz, ele tem a chance de encontrar amor e um lar confortável quando Samantha (Cécile De France), dona de um salão de beleza, tem a ideia de ficar com ele nos finais de semana, proporcionando-lhe tranquilidade e paz. No entanto, Cyrill não sabe lidar com carinho desinteressado e se envolve com um jovem traficante de drogas, o que pode lhe afastar de vez de uma vida distante das ruas e de um futuro trágico.

É admirável a forma com que Jean-Pierre e Luc Dardenne fogem das inúmeras armadilhas nas quais poderiam cair em seu filme. "O garoto da bicicleta" não tem intenção de passar lições de moral nem tampouco o objetivo de emocionar com golpes baixos. A relação entre Cyrill e Samantha é mostrada com naturalidade e os caminhos que ela segue jamais penetram no perigoso terreno do sentimentalismo barato, ainda que em determinados momentos seja difícil não se comover com a dificuldade do protagonista mirim em se deixar entregar ao amor oferecido. Esse compromisso com a realidade é o maior trunfo da obra, uma pequena pérola de simplicidade e calor humano cujo final refrescante não deixa de ser um alívio e uma esperança.

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UM DIA

Posted by Clenio on 23:45 in
Parafraseando Nelson Rodrigues, "envergonha-me estar aqui proclamando o óbvio", mas, ao assistir-se à adaptação para o cinema de um livro querido é preciso estar perfeitamente ciente de que é virtualmente impossível ficar totalmente satisfeito. Isso acontece com uma raridade impressionante. Aconteceu com "As horas", magistral transição do romance de Michael Cunninhgam por Stephen Daldry em 2002. Aconteceu de novo em 2007 com "Desejo e reparação", que Joe Wright dirigiu com base no espetacular drama literário de Ian McEwan. Mas infelizmente não aconteceu com "Um dia", que a dinamarquesa Lone Scherfig assina depois do êxito de seu "Educação", que ano passado chegou a concorrer ao Oscar de Melhor Filme. Tudo bem, o livro de David Nicholls não é uma obra-prima como os citados trabalhos de Cunningham e McEwan, mas é uma leitura deliciosa, ágil, comovente,engraçada e inteligente como poucas conseguem ser. E sua versão em celulóide pode até não ser um filme que vá ganhar estatuetas a granel, mas tem uma honestidade e uma simpatia tão grandes que é difícil não relevar seus pecadilhos.

Ao acompanhar vinte anos na vida de um casal de amigos que se conhece na formatura da faculdade - e que nunca deixam de se falar, escondendo até deles mesmos a paixão que sentem um pelo outro - o roteiro de David Nicholls falha ao fazer um inventário de sonhos despedaçados, relacionamentos frustrados e outras tantas decepções pelas quais todos passamos. Enquanto no livro tudo é emocionante e frequentemente hilariante devido à prosa esperta do autor, no filme as coisas acontecem com uma velocidade tão grande que muitas vezes os protagonistas não conseguem atingir o grau de realismo e densidade necessários. Logicamente é preciso muito malabarismo para condensar duas décadas em pouco mais de cem minutos de projeção, mas a pressa com que o roteiro passa por momentos cruciais das personagens - em especial quando eles finalmente começam a amadurecer - acaba prejudicando sua complexidade, deixando-os quase como duas personagens clichê de comédias românticas, o que - e quem leu o livro sabe disso - não pode estar mais longe da verdade.

Dexter Mayhew (vivido com graça e carisma por Jim Sturgess) e Emma Morley (interpretada pela linda e talentosa Anne Hathaway) são apaixonantes. Ele é sedutor, imaturo, no limite do egocentrismo. Ela é inteligente, ambiciosa e idealista. Eles passam a noite juntos no dia 15 de julho de 1988 e prometem ser amigos. Ele torna-se apresentador de um programa ruim de TV, envolve-se com drogas, mulheres e um certo tipo nocivo de fama. Ela vira garçonete, inicia um relacionamento com um aspirante a humorista mas jamais desiste de ser uma escritora. Eles nunca deixam de se falar. Mas são incapazes de perceber que se amam (ou pelo menos escondem esse sentimento tão fundo que desenterrá-lo pode trazer mais dor do que felicidade). Até que um dia...

Os românticos irão se deliciar com "Um dia". É um filme lindamente fotografado, com uma bela trilha sonora de Rachel Portman, dirigido com sensibilidade e leveza e repleto de um clima de delicadeza que se torna patente quando o roteiro permite que Sturgess brilhe com seu perdido Dexter (em especial em suas cenas com o ótimo Ken Stott, que interpreta seu pai) ou com sua química com Hathaway (ainda que ela esteja aquém das possibilidades mostradas em filmes como "O casamento de Rachel" ou até mesmo em "Amor e outras drogas"). É uma história de amor que emociona por tratar de pessoas de verdade e por fugir (dentro de suas possibilidades) de um final previsível. Quem leu o livro vai dizer (com razão) que poderia ser melhor. Mas ainda assim é um belo programa para os fãs do gênero e tem tudo para tornar-se cult com o passar dos anos.

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A CHAVE DE SARAH

Posted by Clenio on 11:54 in
A princípio, "A chave de Sarah" parece ser só mais um daqueles dramas que exploram o Holocausto judeu e que buscam a simpatia (e os Oscar) da Academia de Hollywood. No entanto, um olhar mais atento percebe que o filme do cineasta francês Gilles Paquet-Brenner tem mais a oferecer do que simplesmente cenas chocantes das crueldades cometidas com a desculpa da guerra - aliás, o filme é bastante discreto em relação a isso, preferindo não detalhar as atrocidades que todo mundo já conhece (e que o cinema não cansa de mostrar). A adaptação para o cinema do livro de Tatiana De Rosnay opta pelo lado emocional da situação, concentrando-se em uma trajetória individual (ou duas, dependendo do ponto de vista) ao invés de uma catarse coletiva. E tem como seu maior trunfo a atuação excelente de Kristin Scott-Thomas, cada vez mais se firmando como uma das maiores atrizes em atividade.

Scott-Thomas interpreta Julia Jarmond, uma jornalista americana que vive em Paris com o marido arquiteto e a filha pré-adolescente. Quando o filme começa, eles estão em vias de mudar-se para o antigo apartamento da família dele, um lugar amplo e bem localizado, mas carente de uma boa reforma. Enquanto a nova moradia não fica pronta, Julia se dedica a uma reportagem a respeito das centenas de judeus franceses expulsos de suas propriedades em julho de 1942 para ficarem presos em um velódromo até serem transferidos para campos de concentração (em um episódio pouco conhecido inclusive pelos franceses até o governo de Jaques Chirac, nos anos 90). Ela então descobre, atônita, que a casa para onde irá se mudar pertenceu a uma dessas famílias. Mesmo contra a vontade do sogro - que conhece toda a trágica história do apartamento - Julia vai atrás daquela que parece ser a única sobrevivente da família, uma mulher chamada Sarah Starzynski.

O roteiro de "A chave de Sarah" se alterna entre as investigações de Julia - tornadas ainda mais interessantes quando ela se descobre grávida sem contar com o apoio do marido - e os acontecimentos da vida da pequena Sarah (vivida pela ótima Mélusine Mayance), desde o momento em que é obrigada a abandonar sua casa juntamente com os pais (uma cena tensa que dá origem a todo o poderoso drama posterior) até seu melancólico desfecho (passando pelo chocante reencontro com o irmão que deixou trancado no armário de casa no momento da invasão). A edição enxuta de Hervé Schneid (que assinou o cultuado "O fabuloso destino de Amélie Poulain") também traduz o desejo do cineasta em manter um tom sóbrio, neutro e o mais distante possível de sentimentalismos forçados. A confiança do diretor em seu material é tanta que ele nem mesmo perde tempo (aplausos a ele) em mostrar cenas explícitas de violência física a não ser quando se faz estritamente necessário - e mesmo assim de maneira discreta mas eficaz. É na delicadeza de sua direção e nos olhares de suas atrizes centrais que se encontra toda a grandeza do filme.

Mesmo que não seja o melhor filme do gênero - e o final um tantinho clichê nem chega a incomodar - "A chave de Sarah" é um belo drama adulto, sério e realizado longe dos estúdios de Hollywood (o que já lhe dá uma certa confiabilidade artística um pouco maior). É emocionante sem ser piegas, é realista sem ser chocante e ainda por cima dá mais uma chance ao talento de Kristin Scott-Thomas e traz de volta às telas o sumido e ainda bom ator Aidan Quinn (na pele do filho de Sarah). Merece ser conferido!

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MEDIANERAS

Posted by Clenio on 20:53 in
Em um conto do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu cujo nome não me recordo agora, duas personagens que não se conhecem mas que são nitidamente almas gêmeas cruzam uma pela outra em uma rua qualquer e não se reconhecem, não trocando nem ao menos duas palavras. Pois foi esse conto genial de Caio que me veio à cabeça enquanto assistia à "Medianeras", mais um excelente exemplo do cinema argentino a aportar no Brasil.  A diferença entre o conto e o filme é que, enquanto nas páginas poéticas de Abreu a solidão acaba saindo vencedora, nas imagens do roteirista e cineasta Gustavo Taretto o amor e a esperança é que são vitoriosos.

Os dois protagonistas de "Medianeras" são bastante solitários e um tanto quanto complicados. Martin (Javier Drolas) é um criador de websites que vive isolado em um apartamento minúsculo de Buenos Aires, tendo a companhia apenas da cachorrinha que herdou de um namoro interrompido. Hipocondríaco e praticamente um misantropo, ele baseia suas relações praticamente através da Internet. Já Mariana (Pilar López de Ayala) acaba de sair de um relacionamento frustrante de quatro anos e não se sente pronta para recomeçar a vida, preferindo a companhia dos manequins plásticos que fazem parte de seu trabalho como vitrinista (uma vez que a carreira de arquiteta ficou apenas no diploma). Tanto um quanto o outro sentem que a solidão não é exatamente um caminho saudável a seguir, mas também são incapazes de lidar com o mundo a seu redor. Ele só compra, ouve música, vê filmes e se relaciona através do computador. Ela se sente perdida no mundo, procurando algo que nem mesmo sabe o que é, em um interessante paralelo com os livros infantis "Onde está Wally?" ("se não encontro nem mesmo alguém que eu sei exatamente quem é, como poderei encontrar alguém que eu nem conheço?", ela se pergunta, frustrada). O que eles não sabem, porém, é que são vizinhos, que moram na mesma rua, e que várias vezes se cruzaram pelas calçadas, sem perceber um ao outro.

"Medianeras" é um estudo sobre solidão, sobre as benesses e os problemas de tecnologia (que afasta as pessoas enquanto deveria uní-las), sobre o crescimento desenfreado das grandes cidades, sobre as dificuldades humanas em se comunicar. Mas, ao contrário do que pode parecer, não é um drama pesado e denso, capaz de estragar o humor do espectador. Taretto cria, em seu roteiro, uma sucessão de cenas agradáveis, equilibrando alguns momentos de graças sutil com outros da mais pura e honesta melancolia. Sua forma criativa de contar a história de amor entre Martin e Mariana ainda encontra espaço para digressões filosóficas pertinentes e jamais aborrecidas, que questiona principalmente a vida nos grandes centros - que isola e oprime seus cidadãos - e a aparente impossibilidade de uma felicidade real.

Mas, acima de tudo, "Medianeras" é um belo filme sobre a esperança e sobre como a felicidade pode estar ao alcance dos olhos quando se presta atenção a seu redor. E além do mais, é impossível não se encantar com um filme que homenageia explicitamente "Manhattan", um Woody Allen dos melhores. É de sair do cinema com um largo sorriso estampado no rosto.

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