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FELIZES PARA SEMPRE?: PORNOGRAFIA OU UMA DESCULPA PARA DESTILAR PRECONCEITO?

Posted by Clenio on 15:50 in ,
Por volta do ano 1600, William Shakespeare escreveu um de seus maiores clássicos, "Othello", uma obra-prima sobre o ciúme - "o monstro de olhos verdes" - e acabou sua história com o protagonista apunhalando a esposa Desdêmona por acreditar ter sido traído por ela. Nos anos 50, Nelson Rodrigues fascinou a população brasileira com seus contos de "A vida como ela é...", que invariavelmente falavam de adultério e violência conjugal - características também de sua obra teatral, que volta e meia apresentavam homens febris e coléricos despejando suas frustrações no "sexo frágil". Chico Buarque, o compositor brasileiro que mais entende a alma feminina sugeria, em "Geni e o zepelim", um constante e violento bullying contra a personagem-título pelo simples fato de ela "dar pra qualquer um". Qualquer pessoa com um mínimo de discernimento percebe, nos casos citados, tanto uma crítica adjacente ao status quo masculino e machista - status esse que permitia com um eloquente silêncio uma conivência com o que se convencionou chamar de "lavar a honra com sangue" - quanto um reflexo de seu tempo, sua sociedade e os princípios morais vigentes. Tudo bem que Nelson Rodrigues não era um exemplo de liberalismo - quem leu sua biografia "O anjo pornográfico", de Ruy Castro, sabe bem do que estou falando - mas negar a ele a genialidade de seu trabalho como dramaturgo e ficcionista é, no mínimo, cafajeste. E se de Shakespeare pouco se sabe apesar de tantos estudos e tantas especulações, de Chico não se pode dizer um "ai" a respeito de incitar a violência contra a mulher. Nem ele - pai de três filhas - nem Shakespeare - autor dos mais belos sonetos de ode à beleza feminina - seriam capazes de tal barbaridade.

Barbaridade, sim. Sou, como qualquer ser humano dotado de um mínimo de razão e sensibilidade, totalmente contra esse ato cruel, abjeto e torpe que é espancar uma mulher. Não só uma mulher, aliás. Crianças, bandidos, manifestantes, o que for. Violência não é uma opção, nunca foi e nunca será. Mas, como aspirante a escritor e dramaturgo - portanto com profundo senso estético e crítico a respeito de manifestações artísticas - não posso me calar diante de absurdos que são propalados aos quatro ventos nessa terra de ninguém chamada Internet. A minissérie "Felizes para sempre?" - percebam, o título acaba com um ponto de interrogação, o que por si só já diz muito a respeito de seus questionamentos - mostrou, nessa quinta-feira, 29/01, uma cena em que o personagem Joel (João Baldisserani) bate violentamente na esposa, Suzana (Caroline Abras), ao descobrir que ela dormiu com outro homem (apesar do casamento de ambos já ter acabado). Uma cena forte? Sim, sem dúvida. Mas apologia à violência contra a mulher? Jamais. Assim como qualquer obra de arte que se propõe a discussões, a minissérie apenas apontou o dedo para (mais) uma chaga que machuca a sociedade brasileira, assim como a corrupção e o consumo de drogas, também retratados na telinha. A televisão não está fazendo uso da violência para alavancar a audiência (ou talvez também esteja, qual o mal nisso, sendo ela uma empresa como outra qualquer?), mas sim, como poderoso instrumento que é, mostrando, de forma crua e chocante, uma realidade que nos cerca com uma regularidade impressionante. É função da arte - e no Brasil principalmente da teledramaturgia, com seu alcance imenso - refletir sua sociedade e botar o dedo na ferida. Não cabe a ela esconder debaixo do tapete, por pura conveniência, as mazelas e os podres. Joel não é o heroi da minissérie - ninguém é - e tampouco seus atos são justificáveis. E é exatamente essa conotação odiosa e arcaica que o programa quer denunciar. Só não vê quem não quer - ou quem tem implicância sistemática com qualquer coisa que venha da Globo, independente de sua capacidade de criar momentos únicos da telinha a despeito de sua ideologia política e econômica que não vou discutir aqui por pura falta de argumentos sólidos.

Argumentos sólidos, aliás, faltam àqueles que também acusam a série de ser "pornográfica". São as mesmas pessoas que curtem Valesca Popozuda no Facebook, que tocam Anitta nas festas infantis e que acham graça nas subcelebridades batizadas como "Peladona de Congonhas" que apontam o dedo para as cenas mais quentes de "Felizes para sempre?", um programa feito PARA ADULTOS, transmitido em um horário apropriado e, sejamos justos, com cenas de sexo fotografadas deslumbrantemente e dirigidas com extremo bom-gosto. Os diálogos são fortes? Talvez, para o padrão médio do público que acha graça das piadas homofóbicas de "Zorra total" e "Império". Mas são realistas, cortantes, eficazes para o desenvolvimento da trama. É uma trama em que o sexo está no cerne da questão, seria no mínimo hipócrita ignorá-lo. Por que o sexo pode ser mostrado na novela das nove apenas como "encheção de linguiça" e não pode aparecer às 23h? A resposta é simples: porque o sexo da novela não ameaça, não ofende os pruridos morais de quem o vê apenas como símbolo do romantismo. Sexo é carne, também. É desejo, é tesão puro e simples. E isso as senhoras de Santana não podem permitir caladas, é claro. Vai que no próximo capítulo mostrem um casal gay que se ama de verdade, não é mesmo?

Quando Thiago Martins espancou um gay até a morte na novela "Insensato coração" todos acharam corajoso do autor Gilberto Braga em falar da homofobia - e foi. Quando Débora Falabella interpretou a Mel em "O clone", de Glória Perez, todos aplaudiram a iniciativa da autora em levantar a questão do abuso de drogas. Quando o personagem de Bruno Gissoni fingia não conhecer a mãe adotiva que era negra em "Em família", de Manoel Carlos, o público viu na subtrama uma interessante discussão sobre o racismo. Todas são questões importantes e válidas. Por que, então, uma cena como a mostrada ontem - dentro de um contexto narrativo, com causas e consequências dramáticas e longe de possuir um teor de apologia - despertou tanto a ira de algumas pessoas? Simplesmente porque elas estão tão cegas e obcecadas com suas próprias ideologias de vida - se é da Globo eu sou contra, se tem cena de violência contra a mulher eu sou contra, se não fala dos temas que EU acho importantes eu sou contra - que não conseguem perceber que tudo na vida tem dois lados. A violência na TV pode chamar a atenção para a violência nos lares e não o contrário. Ninguém virou gay depois do beijo de "Amor à vida". Ninguém saiu matando a esmo depois de "Dupla identidade". Shakespeare não pode ser culpado pela morte de Dêsdemona. Chico não pode ser apedrejado junto com Geni. Nelson não pode ser acusado pela podridão da sociedade que ele apenas retratou. Machismo é algo nojento e imperdoável. Mas burrice e sectarismo também é.

PS - Fernando Meirelles está de parabéns. "Felizes para sempre?" é desde já um marco na teledramaturgia brasileira, a despeito de sua baixa audiência. E eu não sou macaco de auditório da Globo, porque tenho senso crítico e percebo a queda de qualidade de muitos de seus programas. Portanto, se alguém vai usar isso como argumento, nem perca tempo. O que a Globo empresa faz ou deixa de fazer não é o ponto aqui. Estou discutindo mérito artístico. E muito me admira que várias dessas pessoas tão cheias de moral que reclamam da minissérie se auto-denominem "artistas" - em tese pessoas que deveriam ser contra o sistema vigente e buscar sempre a revolução cultural e o liberalismo - sendo que nem conseguem julgar uma obra de arte sem deixar de lado o enorme peso de preconceito que carregam.

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LIVRE

Posted by Clenio on 20:07 in
Em primeiro lugar é preciso reconhecer o quanto o cineasta Jean-Marc Vallé melhorou desde "Clube de Compras Dallas", seu trabalho anterior que, apesar de ser bastante medíocre, conquistou uma vaga entre os indicados ao Oscar de melhor filme do ano passado - além de ter sido laureado com as estatuetas de melhor ator e coadjuvante masculino (Matthew McConaughey e Jared Leto, respectivamente). Depois, faz-se necessário deixar de lado a impressão de que sua nova obra é uma espécie de "Na natureza selvagem" feminino. Sim, "Livre", baseado em um livro escrito por Cheryl Strayde e publicado no Brasil pela editora Objetiva , lembra bastante o espetacular filme que Sean Penn lançou em 2007, mas apesar das inúmeras semelhanças, consegue alcançar uma identidade própria, graças principalmente ao desempenho de sua atriz central, Reese Witherspoon.

Witherspoon, que ficou com o papel principal batendo nomes fortes como Jennifer Lawrence, Scarlett Johansson e Emma Watson, merece a indicação ao Oscar de melhor atriz que recebeu este ano: sua performance corajosa e cheia de garra mostra uma intérprete madura e sensível que confirma o talento dramático com que acenava em "Johnny & June" - que lhe rendeu uma estatueta talvez precoce demais, em 2006. Desviando com maestria das inúmeras armadilhas de um roteiro repleto de clichês - que ocasionalmente funcionam - ela é o corpo e a alma do filme de Vallé, e segura nos ombros, mais do que o peso de sua bagagem, a responsabilidade de transformar o que poderia ser mais um daqueles "filmes de estrada com mensagem no final" em uma experiência senão inesquecível, ao menos agradável e interessante o bastante para manter a plateia presa na poltrona até os créditos finais.

Assim como acontecia em "Na natureza selvagem", com o perdão da inevitável comparação, é um drama pessoal que empurra a protagonista para a estrada - no caso de Cheryl, a confusão psicológica que tornou-se sua vida depois da morte prematura da mãe, vivida por Laura Dern em papel que lhe rendeu uma inexplicável indicação ao Oscar de coadjuvante. Repentinamente privada da companhia materna, a jovem inicia uma jornada veloz rumo à autodestruição - drogas, sexo promíscuo - até que, por uma dessas iluminações que o cinema tanto ama, resolve recuperar a sanidade empreendendo uma viagem - a pé - pela costa do Oceano Pacífico . No caminho, logicamente, ela não apenas encontra animais selvagens - cruzando com outros viajantes, com quem troca experiências e apoio, Cheryl descobre o quanto a vida ainda pode lhe oferecer.

Seguindo a mesma linha de "Comer, rezar, amar" - livro de Elizabeth George que chegou às telas com Julia Roberts no papel principal - "Livre" é um filme que se concentra basicamente em sua protagonista e em sua trajetória rumo ao final, seja ele feliz ou trágico. Jean-Marc Vallé percebeu essa característica da história e assinou um filme bem superior a seu "Clube de Compras Dallas", que pecava em não desenvolver a contento seus personagens. Mesmo que por vezes ainda falte um aprofundamento na história de Cheryl - contada basicamente através de flashbacks fora de ordem cronológica, uma tentativa um tanto discutível de ditar um ritmo mais ágil ao filme - é oferecido ao público um panorama bastante satisfatório dos fatos do passado que levaram-na à decisão de buscar o auto-encontro espiritual que dá o empurrão inicial à história. O cineasta também tem o mérito de evitar o drama fácil, optando, em sua narrativa, por um caminho menos apelativo e mais sóbrio, o que conduz com mais eficiência à bela e inspiradora sequência final.

"Livre" é, afinal, um belo filme. Dispa-se do preconceito de achar que é uma cópia de "Na natureza selvagem" e arrisque uma sessão. Se nada lhe interessa na história, há ao menos a atuação primorosa de Witherspoon e a bela fotografia de Yves Bélanger para encher os olhos.

E para quem se interessar, aqui estão as resenhas de "Clube de Compras Dallas" e "Na natureza selvagem".

 http://www.lennysmind.blogspot.com.br/2014/01/clube-de-compras-dallas.html#

http://clenio-umfilmepordia.blogspot.com.br/2013/03/na-natureza-selvagem.html

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SETE ANOS

Posted by Clenio on 16:46 in
Quem leu "Fim" (Ed. Companhia das Letras), seu primeiro romance, lançado em 2013, sabe que Fernanda Torres não é simplesmente uma atriz entediada com a profissão que resolveu brincar de escritora: ela tem um talento nato para as letras. Se em sua estreia como ficcionista ela já mostrou a que veio, na compilação "Sete anos" - que reúne suas crônicas publicadas na revista piauí, na Veja Rio e na Folha de S.Paulo - ela comprova seu olhar arguto, inteligente e poético da vida e do cotidiano com uma prosa que equilibra com maestria erudição, vivência e bom-humor. Seja emocionando ao descrever seus últimos momentos ao lado do pai ou narrando suas aventuras Xingu adentro durante as filmagens de "Kuarup", de Ruy Guerra, Fernandinha conquista o leitor sem fazer esforço, imprimindo à sua escrita o mesmo carisma que faz dela uma das atrizes mais queridas do público brasileiro.

Em suas crônicas - e perfis, como o do roteirista Bráulio Mantovani e do cineasta palestino Hany Abu-Assad - Fernanda Torres foge do óbvio, sempre buscando um caminho de viés para salientar seus pontos de vista. O leitor que procurar um texto banal, construído de forma métrica e previsível, talvez vá estranhar a maneira tortuosa com que a atriz mistura na mesma dissertação informações aparentemente aleatórias para chegar a um ponto específico. Exemplo? Um encontro com a crítica de teatro Bárbara Heliodora a faz citar Shakespeare, que a lembra de "Édipo Rei", de Sófocles. O tema da crônica? José Dirceu e as trapalhadas do PT em lidar com a corrupção. Começa uma crônica citando Oscar Wilde para falar sobre William Bonner e as entrevistas com os candidatos à presidência. Inicia outra falando de um adolescente que reclama de pagar por um download de música para discorrer sobre o valor da arte. Defende o valor artístico da pornochanchada depois de citar a Orquestra Filarmônica de Londres. E utiliza a série de TV "House of cards" para analisar a política brasileira sob a ótica da dramaturgia.

Nunca se sabe o que esperar de uma crônica de Fernanda Torres. Para os fãs da atriz - e do teatro no geral - ela oferece um longo perfil do mestre John Gielgud, relembra com saudades Dercy Gonçalves e Jorge Dória, dá sua opinião a respeito de filmes e atores, questiona o medo do palco com um inventário de grandes nomes dos palcos que sofriam de tal ansiedade. Para quem gosta de arte ela relata suas experiências em exposições, galerias, concertos e salas de cinema. Para quem se interessa por política, ela não se faz de rogada e expõe o que pensa, sempre com respeito e inteligência, sobre aqueles que nos governam. Tudo isso em meio a momentos extremamente pessoais - vide o belo "Despedida", sobre o adeus a Fernando Torres e o tocante "Acaso", sobre seu encontro com a dama Fernanda Montenegro com Simone de Beauvoir.

"Sete anos" talvez decepcione a quem procura nos textos de Fernanda Torres o humor debochado com que ela é normalmente relacionada - com justiça, aliás. Mas é uma grata surpresa perceber que, por trás de seu brilhante talento como atriz ela também sabe falar sério sobre qualquer assunto - e tem cérebro o bastante para isso. Só resta ao leitor sorver suas palavras, emocionar-se com sua prosa e torcer para que logo venha outro livro - seria pedir muito um livro sobre os bastidores de sua genial carreira até aqui??



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O JOGO DA IMITAÇÃO

Posted by Clenio on 22:07 in
Se o filme fosse ruim e sua história não fosse fascinante e quase inacreditável ainda assim "O jogo da imitação" deveria ser obrigatório para qualquer um devido à sua mensagem pró-tolerância - conceito abstrato desconhecido para aberrações como Jair Bolsonaro, Marco Feliciano, Silas Malafaia e Levy Fidelix, entre outros menos cotados mas igualmente perigosos em seu preconceito doentio e beligerante. A história real de Alan Turing, o matemático inglês que criou uma máquina capaz de decifrar códigos secretos da Alemanha nazista e assim abreviou a II Guerra em cerca de dois anos - poupando, por consequência, milhares de vidas - não é apenas uma história de guerra. Não é apenas uma ilustração de como o ser humano pode superar as máquinas com sua inteligência. Não é apenas sobre um período negro na história da humanidade. É também uma história sobre como a discriminação e a ignorância ainda conseguem suplantar o espírito humano a ponto da tragédia. Sim, Alan Turing, além de gênio, era homossexual, crime passível de prisão na Inglaterra da época, e optou pela castração química a ter que abandonar sua criação - que tinha raízes profundas que remetiam à sua infância e a seu primeiro e grande amor. Sim, "O jogo da imitação" é, além de um estupendo suspense de guerra, uma bela e emocionante história de amor.

Dirigido pelo norueguês Morten Tyldum - que está merecidamente entre os indicados ao Oscar de sua categoria neste ano tão repleto de injustiças cometidas pela Academia - "O jogo da imitação" é brilhante por pelo menos duas razões. Primeiro, porque não levanta a bandeira da homossexualidade para vender ingressos, preferindo deixar a vida pessoal de seu protagonista vir à tona aos poucos, quase com uma subtrama que se desvenda magistralmente no ato final, dando sentido e um toque emocional precioso à narrativa (mérito também do roteiro de Graham Moore). E segundo porque apresenta uma das atuações mais viscerais do ano: na pele de Turing, o ator Benedict Cumberbatch mostra porque tornou-se, de dois anos pra cá, um dos intérpretes mais requisitados de Hollywood. Caminhando na tênue linha que separa o grotesco do sublime, ele constroi um protagonista que, a despeito de suas características quase clichês (é antissocial, é excêntrico, é um tanto arrogante), conquista a simpatia do público sem precisar apelar para a compaixão - até as explosivas sequências finais onde revela seu lado apaixonado e desmancha o coração de qualquer ser humano dotado de alma.

Baseado em um livro de Andrew Hodges, "O jogo da imitação" é, também, um fascinante passeio pelos bastidores da II Guerra menos retratados pelo cinema, bem mais afeito à batalhas sangrentas do que a lutas intelectuais. Sem deixar que as complicadas equações e códigos decifrados por Turing sejam empecilho para a compreensão da história, o roteiro busca concentrar-se na relação do protagonista com seus colegas de missão - também importantes para o desfecho do conflito - e com seu passado, contado através de flashbacks inseridos nos momentos corretos: ao contrário do que acontece com outros filmes que abusam do recurso, atrapalhando o ritmo com desnecessárias interrupções, a edição do veterano William Goldenberg é certeira, trabalhando em conjunto para desenhar o belíssimo produto final, assim como a impecável reconstituição de época e a trilha sonora inspirada de Alexandre Desplat. A direção de Tyldum é tão firme, aliás, que até mesmo Keira Knightley está bem em cena, deixando de lado suas caras e bocas costumeiras - ser indicada como coadjuvante talvez seja mais reflexo de um ano fraco na categoria do que da excelência de seu trabalho, mas ela está decididamente contida e convincente.

Mas, sem dúvida nenhuma, o maior valor de "O jogo da imitação" é a força que imprime em seus minutos finais, quando fica claro à plateia o quanto a humanidade ainda precisa caminhar para se tornar digna de ser assim chamada. Saber que foi um homossexual um dos maiores responsáveis pelo fim de um período de terror no mundo, e que foi ele quem salvou milhares de vidas talvez - talvez, já que não dá para pedir razão a seres desprovidos dela - pudesse mudar o modo como muita coisa é vista e percebida ainda hoje, sete décadas depois do fim do conflito. E muito disso se deve à corajosa atuação de Benedict Cumberbatch. Seu trabalho irretocável enfrenta concorrência ferrenha no Oscar deste ano, principalmente de Eddie Redmayne em "A teoria de tudo" e Michael Keaton em "Birdman", ambos excelentes em seus filmes. Mas arrepios de emoção somente ele conseguiu me causar até agora.

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FAZENDO UM CURRÍCULO - UMA HISTÓRIA QUASE SURREAL. QUASE.

Posted by Clenio on 22:27 in
LUIZA: Como não é suficiente, Fernando? O que mais você quer que eu coloque nesse currículo?
FERNANDO: Luiza, você NUNCA trabalhou na vida. Tem que se concentrar nos seus pontos fortes.
LUIZA: E eu lá tenho ponto forte, Fernando? Nunca fiz nada nessa vida a não ser ir à aula e assistir
           "Malhação". E ficar xingando muito no Twitter.
FERNANDO: (ANIMADO) Pois então: conhecimento em Informática.
LUIZA: Não põe isso, não. Não vai colar. E se eles mandarem eu consertar algum computador?
FERNANDO: Conhecimento em Informática não significa que você vai ter que consertar computador,
                   Luiza. Mas alguma qualificação você deve ter. Alguma habilidade você deve ter.
LUIZA: Não tenho habilidade nenhuma.
FERNANDO: Luiza, até pra dançar créu tem que ter habilidade. Não é possível que você não tenha
                    nenhuma.
LUIZA: Eu fiz aquele curso de massagem aurivédica. Isso conta alguma coisa?
FERNANDO: O que significa isso?
LUIZA: Massagem aurivédica é massagem... auri vem de aura.
FERNANDO: E védica?
LUIZA: Não faço ideia.
FERNANDO: O que tu aprendeu nesse curso, então, criatura?
LUIZA: Eu fui só na primeira aula, Fernando. Depois a gente teve que ficar ouvindo umas músicas
           chatas pra meditar e eu vazei.
FERNANDO: Então vamos supor, só supor... que o infeliz que ler o seu currículo fique
                    impressionado com o fato de você saber fazer essa tal massagem aurivédica.
                    Você vai fazer o que quando ele pedir uma demonstração?
LUIZA: E alguém lá sabe o que é massagem aurivédica, Fernando? Nem eu que fiz o curso sei...
           Faço qualquer massagem diferente e era isso.
FERNANDO: Ponho isso no currículo, então?
LUIZA: Claro, tá uma pobreza esse currículo. Vai ficar com uma página ou duas, só.
FERNANDO: E quantas páginas você acha que um currículo deve ter?
LUIZA: Milhares, de preferência. Quanto mais páginas mais a criatura tem chance, né?
FERNANDO: Luiza, se você não for Tolstoi ou Dostoievsky nem pense em escrever milhares de
                    páginas, porque ninguém vai ler.
LUIZA: Se eu não for quem?
FERNANDO: Você acha que as pessoas tem tempo de ler currículo de alguém que só fez curso de
                    massagem aurivédica na vida?
LUIZA: Por que essa implicância com meu curso, hein? Eu impliquei com esse monte de curso chato
           que você tascou no seu currículo?
FERNANDO: Acontece que esse monte de curso chato tem utilidade. Eu tenho curso de inglês, es -
                    panhol, francês e italiano. Curso de contabilidade comercial. Curso de informática em
                    nível avançado. Curso de gestão e liderança. Curso de mecatrônica. (NERVOSO) Eu
                    sei montar um robô, Luiza. Um robô! Você sabe montar um robô? Não, você só sabe
                    fingir que sabe fazer massagem aurivédica. Coisa que nem sabe o que é!
LUIZA: Fernando, você precisa arrumar um emprego urgente.
FERNANDO: Sim, eu preciso. Obrigado por me lembrar. O proprietário do meu apartamento
                     também fez essa gentileza.
LUIZA: Eu também preciso. Minha mãe não aguenta mais pagar pelas minhas baladas. Nâo dá pra
           aumentar essas letras aí, não?
FERNANDO: Aumentar a fonte do currículo não vai diminuir a sua inutilidade.
LUIZA: Fonte? Quem falou em fonte? Tô falando em LETRA. O que você está fazendo?
FERNANDO: Deletando o "conhecimento em Informática".
LUIZA: Você está de muita má-vontade comigo.
FERNANDO: Tá bom, Luiza, eu aumento a LETRA. Quer que eu ponha em negrito, também?
LUIZA: Isso ajuda?
FERNANDO: Ajuda a quem tem problemas de visão.
LUIZA: Por falar em visão tem que colocar uma foto, né?
FERNANDO: Não se coloca foto em currículo, a não ser quando for solicitado.
LUIZA: E como é que as pessoas vão ver a minha cara?
FERNANDO: Te garanto que as pessoas só vão querer ver a sua cara se o seu currículo for melhor
                    que esse que a gente está TENTANDO fazer.
LUIZA: Fernando, o currículo não é meu? Deixa eu fazer do meu jeito? Se você quer fazer o seu
           desse jeito sem graça, tudo bem. Mas o meu tem que ter a minha personalidade, né?
FERNANDO: Claro... por que existe regras quanto a isso se não é pra serem quebradas, não é? 
                    Que foto você quer colocar?
LUIZA: Ah, pode escolher qualquer uma do Face... mas não do álbum "Família".
FERNANDO: Tá louca? Foto do Face? Vai colocar uma foto fazendo biquinho na frente do espelho?
                    Tirada com pau de selfie? No currículo?
LUIZA: Ah, é? E que foto o senhor sabe-tudo recomenda?
FERNANDO: Já que você faz tanta questão de foto tem que ser uma formal, tipo 3x4.
LUIZA: Tá louco? Eu pareço uma psicopata em foto 3x4.
FERNANDO: Por que será, né?
LUIZA: Fernando, cadê aquele resumo que eu fiz e pedi pra você colocar aí?
FERNANDO: Você estava falando sério que queria colocar tudo aquilo?
LUIZA: Por que não? Queria dar aos meus futuros empregadores um panorama geral da minha
           vida.
FERNANDO: Luiza, desculpa a sinceridade, mas a sua vida não interessa a ninguém. Principalmente
                    com aquele monte de erro de português.
LUIZA: Eles precisam saber que eu sou culta e já li muito.
FERNANDO: Ler toda a obra do Paulo Coelho e a coleção "Harry Potter" não faz de você uma mulher
                    culta.
LUIZA: Dane-se, Fernando. O emprego que eu procuro não precisa de leitura.
FERNANDO: Por falar, nisso, boa pergunta: que tipo de emprego você está procurando?
LUIZA: Um emprego que pague bem.
FERNANDO: Luiza, você não pode mandar o mesmo currículo pra um consultório odontológico e pra
                    uma loja de sapatos.
LUIZA: Ué, por que não?
FERNANDO: O que te leva a crer que pode vender uma rasteirinha e um tratamento de canal da
                    mesma forma?
LUIZA: Olha, desde de que me paguem bem eu tô dentro. Aliás, pode botar no currículo: quero que
           me paguem bem.
FERNANDO: Não pega bem colocar algo assim no currículo.
LUIZA: Fernando, vamos ser práticos. Já pensou se depois de todo esse trabalhão que eu estou
            tendo me chamam pra um empreguinho que pague menos de três mil reais?
FERNANDO: Luiza, eu realmente gostaria de viver nesse seu mundo de fantasia. Três mil reais pra
                    alguém que não tem experiência em nada?
LUIZA: É pra enganar esses caras que eu tô fazendo esse currículo, Fernando.
FERNANDO: E você acha que eles não vão descobrir que você não serve pra nada?
LUIZA: Quando descobrirem eu já estou empregada. Quando me demitirem, eu fico com o seguro-
            -desemprego até arrumar outro.

Fast forward para dali a dois meses: Fernando ainda está à procura de um trabalho. Nenhum de seus cursos parece ter utilidade ou importância. Já vendeu até sua coleção de autores russos - na língua original - para pagar a conta da luz.
Luiza já é gerente de uma empresa de telefonia que gostou de sua espontaneidade. E da foto com o pau de selfie. Como chefe, ela não contratou Fernando porque achou o currículo dele super qualificado. Fim da história.

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PUT SOME FAROFA

Posted by Clenio on 21:53 in
Não é à toa que o texto que ilustra a contracapa de "Put some farofa", de Gregorio Duvivier (Ed. Companhia das Letras) é de Luiz Fernando Veríssimo. Assim como o cronista gaúcho, que ficou famoso pela descrição irônica da rotina da classe média pré-governo PT - onde as divisões de classe eram bem estabelecidas e portanto mais propensas ao deboche - o ator/poeta/humorista carioca, que tornou-se conhecido pelos vídeos do grupo "Porta dos fundos" tem uma visão acurada do dia-a-dia, encontrando sempre o lado ridículo e/ou interessante do mais corriqueiro dos fatos. É bem provável que os fãs de Veríssimo também encontrarão em Duvivier aquele carinho com seus personagens que os fazem saltar das páginas como se fossem pessoas reais - e quem disse que não são?

Em 78 textos - entre crônicas publicadas na Folha de São Paulo, O Globo e blogs, além de esquetes inéditos e outros produzidos pelo "Porta dos fundos" - Gregorio Duvivier mostra que para fazer humor não é preciso ofender ninguém, mesmo que ele mesmo não se furte a fazer piada com Deus e com os religiosos fanáticos com a mesma elegância. Sua prosa se estende desde os relacionamentos amorosos até a política, não poupando piadas prontas, como a homofobia, os exageros nutricionais e a luta pela legalização da maconha, sempre com uma fluência deliciosa e tiradas muitas vezes brilhantes, de fácil identificação com qualquer leitor disposto a momentos de descontração e bom-humor. Mesmo quando parte para textos mais emocionantes (como  "Meus pais", que fala sobre a separação de sua família), Gregorio não perde a leveza, encantando pela simplicidade com que atinge seus objetivos como autor.

E se seu objetivo como autor é conquistar os leitores, missão cumprida. Leve, divertidíssimo e rápido como as melhores coisas da vida, "Put some farofa" é daqueles livros feitos para serem devorados em questão de horas, de preferência com pausa para risadas e uns goles de cerveja. Que venham os próximos!

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WHIPLASH, EM BUSCA DA PERFEIÇÃO

Posted by Clenio on 01:00 in
É difícil não lembrar da velha frase de Thomas Edison que diz que "talento é 1% inspiração e 99% transpiração" quando se assiste a "Whiplash, em busca da perfeição", o extraordinário filme que colocou o pirralho (faz 30 anos de idade hoje mesmo, dia 19 de janeiro) Damien Chazelle no mapa de Hollywood ao conquistar cinco indicações ao Oscar, inclusive melhor filme e roteiro adaptado: ao comer o pão que seu professor de música amassou para provar seu talento como baterista, o protagonista vivido por Miles Teller - uma promessa que vem enfileirando um filme atrás do outro nos últimos dois anos - mostra a realidade de uma parcela imensa de jovens (ou nem tão jovens assim) talentosos que buscam seu lugar ao sol na música sem ter o devido reconhecimento. Não é à toa que o filme vem sendo aplaudido vigorosamente por seu público-alvo, que vê nele uma espécie de merecida e carinhosa homenagem a todos aqueles que tem pela música (ou pela arte em geral, vá lá) uma paixão que transcende qualquer vaidade.

Essa paixão/obsessão/tesão pela música é o mote de "Whiplash", e o que move seu protagonista, o jovem Andrew Nieman (interpretado com garra por Teller, antes visto em "Divergente") a enfrentar todas as dificuldades que aparecem à sua frente para se tornar o grande baterista de jazz que almeja ser. A maior delas surge na figura de Terence Fletcher (J. K. Simmons), um professor tão respeitado quanto rígido que é o líder da banda do conservatório de música onde o rapaz estuda. Escolhido pelo temido mestre, Andrew passa a sofrer com seus métodos de intimidação e humilhação, mas seu amor pelo que faz o mantém disposto até mesmo a abrir mão de sua vida pessoal.

A história engendrada por Chazelle - que, sem financiamento dirigiu um curta que serviu de inspiração para seu elogiado filme - não é exatamente original, uma vez que não hesita em utilizar-se dos mais variados clichês para atingir a plateia, mas o faz com tanta pureza e tanto amor (pelos personagens, pela trama, pela música em si) que é impossível não envolver-se com tudo. A relação entre Andrew e Fletcher (a grande chance de J.K. Simmons, um rosto conhecidíssimo do público que está com as duas mãos no próximo Oscar de coadjuvante) é hipnotizante e rende ao filme seus melhores momentos - e até mesmo a climática sequência final, de nove minutos de duração magistralmente editados e que é capaz de arrepiar a todos aqueles que tem a música na alma e no coração. A impressão que se tem quando se assiste ao filme é que seu jovem diretor quis falar diretamente a essas pessoas, dar-lhes, durante o tempo de uma sessão de cinema, a felicidade e o orgulho de pertencer a esse grupo de gente tantas vezes mal compreendida: os músicos profissionais. E, a julgar pelo entusiasmo geral, foi feliz em sua missão.

Em meio a tantos filmes dispendiosos e festejados, mas ocos de emoção e espírito, "Whiplash" é um sopro de vida e inspiração. Nenhuma de suas indicações ao Oscar é injusta. Injusto é deixar passar esse genial estudo sobre a paixão.

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"INVENCÍVEL" E O AMADURECIMENTO DA ANGELINA JOLIE CINEASTA

Posted by Clenio on 20:03 in
A história de Louis Zamperini é inacreditável, e se não fosse verdadeira provavelmente alguém iria reclamar de seus exageros dramáticos: atleta olímpico na adolescência, ele serviu no exército americano durante a II Guerra, viu seu avião ser abatido em combate, ficou à deriva junto com dois companheiros por quase dois meses (alimentando-se com peixes crus e sobrevivendo aos perigos de insolação e afogamento), foi capturado como prisioneiro de guerra por soldados japoneses, torturado, espancado e submetido a várias humilhações até ser libertado e, depois de passar por um período de trauma pós-guerra, converter-se ao cristianismo e voltar ao Japão para reencontrar seus algozes... e perdoá-los. Tal história, contada por Laura Hillebrand em um livro publicado em 2010, chega aos cinemas agora, poucos meses depois da morte de Zamperini, com o nome de "Invencível" - que não deixa de ser o adjetivo perfeito para seu protagonista.

Dirigido por Angelina Jolie - mostrando crescimento e amadurecimento de sua estreia atrás das câmeras com o pouco visto "Na terra do amor e do ódio" pra cá - "Invencível" era considerado uma aposta forte para o Oscar 2015 por causa de seus temas - II Guerra, superação pessoal - mas acabou morrendo na praia, com três indicações técnicas que não refletem a extensão de sua qualidade. Porém, mesmo taxado como irregular pela maioria da crítica (e talvez tenha realmente alguns pecadilhos, facilmente perdoáveis pela ainda inexperiência de Jolie como cineasta), o filme tem méritos indiscutíveis, como a atuação forte do jovem ator central Jack O'Connell, a fotografia belíssima de Roger Deakins e a narrativa sóbria, isenta de sentimentalismos - cortesia do roteiro, que tem entre seus autores os irmãos Coen, conhecidos pela absoluta falta de papas na língua. E se nos EUA o filme não agradou por motivos os mais variados - cada crítico tem seu ponto de vista, afinal de contas - é impressionante como no Brasil a reclamação é sempre a mesma que acompanha qualquer filme hollywoodiano de guerra: o patriotismo exagerado. Como se fosse defeito ter orgulho do próprio país!

Uma vez Nelson Rodrigues - sempre ele, certeiro em suas observações cotidianas - disse que o brasileiro é "um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem". Fica difícil discordar quando se percebe o certo recalque de muitos comentários a respeito do filme de Angelina, que, segundo eles, ignora as bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki e mostra apenas o sofrimento do protagonista, sem questionar o outro lado da moeda. Talvez esses arraigados donos da verdade absoluta estejam certos em querer dados historicamente acurados, mas o que eles talvez não percebam é que "Invencível" é um filme. Além de um filme, é um filme feito em Hollywood. Além de um filme feito em Hollywood, é narrado sob o ponto de vista de um norte-americano. Portanto, sendo um filme feito em Hollywood e narrado sob o ponto de vista de um norte-americano, nada mais natural que seja simpático à terra do Tio Sam. Não é intenção do filme dar uma aula de história, e sim contar uma. E isso ele faz admiravelmente bem, apesar das opiniões opostas.

Além do mais, é fácil jogar pedras em Angelina Jolie. Ser linda, talentosa, boa atriz, dona de dois Oscar, casada com um dos homens mais desejados do planeta, reconhecida internacionalmente por seu trabalho humanitário e ainda por cima ser boa cineasta talvez seja demais para que todo mundo aceite numa boa. Até de usar seu trabalho na África do Sul para se promover ela já foi acusada - como se precisasse de promoção com todo o currículo que apresenta e com o sorriso que tem. Ah, a inveja....

Mas, enfim... "Invencível" é, sim, um bom filme. Tem uma história emocionante, uma direção segura - especialmente para quem ainda está engatinhando na função - e uma mensagem de superação e de estoicismo que supera qualquer preconceito quanto ao estilo. Não dê bola às críticas negativas. Angelina Jolie está no caminho certo.

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AMORES CINEMATOGRÁFICOS

Posted by Clenio on 18:03 in
Em 1987, ela se apaixonou por um menino única e exclusivamente porque ele era o único da turma que entendia os sentimentos e as roupas da Molly Ringwald em "A garota de rosa-shocking" - e porque gravou para ela uma fita com a música do OMD que tocava no baile de formatura do filme. O namoro acabou quando ela percebeu que ele entendia DEMAIS os sentimentos e as roupas da Molly Ringwald e quando encontrou no guarda-roupa dele um poster do Rob Lowe e um LP da Madonna.

Em 1987, ele caiu de amores (tesão ainda era uma palavra de pouco uso na sua idade e geração) por uma garota que era idêntica à atriz gatinha de "Namorada de aluguel". Mas o amor/paixão/tesão/interesse era compartilhado por todos aqueles que pertenciam ao sexo masculino na escola - inclusive pelo professor de Educação Física que dava em cima de todas as alunas. Não deu em nada.

Em 1988, para não reincidir no erro de julgamento, ela certificou-se se seu novo namorado estava ou não torcendo pela Cher para o Oscar de melhor atriz. Aliviada com a negativa, ela notou que havia uma espécie de insanidade na forma como ele se referia à Glenn Close por causa de "Atração fatal": vagabunda, puta, recalcada eram os termos mais suaves. Algo lhe disse que ele não era um bom partido, e ela pulou fora bem a tempo de fugir de um psicopata que anos depois matou a namorada a facadas porque ela aceitou carona na moto de um primo metido a galã - e ela não deixou de lembrar dele quando, no futuro, reviu "Sid & Nancy, o amor mata".

Em 1990, ele estava apaixonado por uma fã de Tom Cruise. Tudo bem, qual garota não o era naquela época? Mas o amor acabou - o dele por ela e o dela pelo Tom - quando ambos assistiram a "Nascido em 4 de julho": ela achou que ele estava horroroso naquela cadeira de rodas e fez questão de deixar claro que jamais - JA-MAIS! - cuidaria de alguém que ficasse paraplégico. Ele não tinha a menor intenção de deixar que isso acontecesse com ele, mas imaginou um futuro distópico onde ele dependeria de uma mulher como ela e o namoro morreu como os vietnamitas do filme do Oliver Stone.

Em 1992, no apogeu dos hormônios adolescentes e das ideias feministas, ela achou que homens não serviam para nada além de abrir potes e decidiu-se tornar-se lésbica. Engatou um namoro com uma sapata mais experiente que a iniciou nos meandros do sexo gay - e dos filmes temáticos. Começou timidamente, com "A cor púrpura" e "Tomates verdes fritos", passou por produções independentes suecas e turcas e chegou ao limite com um pornô chamado "Quando os homens não existiam" - quando uma anã vestida de aranha caranguejeira surgiu na tela como metáfora de vagina ela percebeu que seu negócio era realmente a heterossexualidade - por mais decepcionantes que seus representantes pudessem vir a ser no futuro. Sua ex-namorada lésbica escreveu um furioso manifesto sobre sua covardia pequeno-burguesa em um fanzine GLS e até hoje cospe no chão quando passa por ela. Ana Carolina recusou-se a gravar uma composição sua por achar agressiva demais.

Em 1993 ele descobriu Quentin Tarantino e encantou-se por uma bela americana que sabia de cor todos os diálogos de "Cães de aluguel" e "Amor à queima-roupa" - inclusive aqueles que ficaram de fora da edição final. O amor durou por alguns anos - atravessou a febre "Pulp fiction" em 1995 - mas acabou quando ela teve a coragem - e a cara de pau, segundo ele mesmo - de chamar "Jackie Brown" de um "Tarantino menor". Durante a discussão final, o tiro de misericórdia foi quando ela declarou que Martin Scorsese estava ultrapassado e ficando gagá ao fazer um filme sobre budismo e que "Los Angeles, cidade proibida" era um filmeco repleto de clichês. A máscara da garota caiu de vez quando ele descobriu - através de investigações posteriores e a descoberta de um diário secreto tipo Laura Palmer - que ela havia assistido a "Titanic" dezenove vezes e chorado em todas. Incoerente da porra! Quem mandou confiar em gente que come bacon no café da manhã?

Em 2002, ela descobriu David Lynch e ficou fascinada com seus primeiros filmes e com um professor de Semiótica que a ensinou a decifrar suas metáforas - e a encontrar seu ponto G. Entre sessões contínuas de sexo avassalador, "O homem elefante" e "Veludo azul", ela largou família, amigos, faculdade e emprego para dedicar-se à busca pelo sentido da vida através dos signos e significados. Durou uns bons seis meses, até que ela cansou de tentar entender a dança do anão em "Twin Peaks" e em uma conversa pós-coito, descobrir que o professor era casado e, pior do que tudo, não tinha achado "Cidade dos sonhos" tudo aquilo.

Em 2004, os dois quase se encontraram na mesma sessão de cinema. Ambos solteiros, ambos sozinhos, ambos mais experientes, encararam "Brilho eterno de uma mente sem lembranças" com o coração apertado e a certeza de nunca terem amado ninguém de verdade. Saíram do cinema aos prantos e dotados de uma carência inenarrável. Ela caiu nos braços de um crítico de cinema que só gostava de filmes anteriores à década de 50 (nem Hitchcock e Billy Wilder ele perdoava) e ele arrumou consolo com uma feroz anti-Hollywood que só via sentido em filmes realizados em países sem água potável. Nenhum dos relacionamentos deu certo, por motivos mais que óbvios.

Em 2006, eles se encontraram em uma festa. Apresentados por amigos em comum - "vocês dois adoram cinema, vão ter muito assunto!" - passaram a noite toda falando em Woody Allen: o homem e a obra. Ela achava que ele tinha culpa no cartório nas acusações de pedofilia, ele tinha a mais absoluta certeza de que tudo era invenção da passivo-agressiva da Mia Farrow, que casou com o diabo em "O bebê de Rosemary" e nunca mais separou. Os dois, no entanto, concordavam que "Match point" era genial, que Allen era um cineasta brilhante e que "A rosa púrpura do Cairo" era uma das maiores obras-primas do cinema americano de todos os tempos. O brilho nos olhos de cada um fez com que os amigos apostassem em casamento. Erraram.

Não demorou muito para que, tanto ele quanto ela, realmente se casassem. Com outras pessoas. A "noite Woody Allen" ficou apenas na memória de ambos, que nunca mais se encontraram. Ele desistiu de tentar ser crítico de cinema e casou com uma eterna estudante de Psicologia cujos filmes preferidos são "A vida é bela" e "O discurso do rei". Ela ficou grávida sem querer de um colega da academia que passa os sábados assistindo ao Supercine - principalmente quando tem filme com o Nicolas Cage ou o Jason Statham.

De vez em quando eles fogem e se escondem em uma sala de cinema. Ano passado quase se cruzaram em uma sessão de "Alabama Monroe", mas os óculos escuros que usavam para esconder as lágrimas os impediram de se ver.

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SÓ DE FOLHEAR UM ÁLBUM DE FOTOGRAFIAS...

Posted by Clenio on 20:00 in
Folhear um antigo álbum de fotografias - aos jovens não familiarizados com o termo em seu uso arcaico, antes do advento das câmeras digitais e da transmutação em páginas nas redes sociais as mais variadas, eu me refiro especificamente a um livro onde as fotos ficavam protegidas por um papel autocolante e guardadas cuidadosamente em um armário fora do alcance das crianças - é, mais do uma viagem no tempo (perdoem o clichê), um choque. Um choque porque, através dessas imagens, muitas vezes esmaecidas ou fora de foco, estão personagens que, devido à atividade cruel do tempo, foram extraídos da novela de nossas vidas. São personagens que, independente de sua importância à época em que participavam dos nossos dramas e comédias, saíram de cena, muitas vezes para sempre. Uns fizeram a transição rumo ao escaninho da memória da mesma maneira discreta com que desempenharam seus papéis, outros deram adeus carregados do pathos que sempre lhes foi característico. Alguns - que pareciam fadados a uma amizade eterna e pétrea - simplesmente desapareceram como se tivessem cumprido sua missão e dado o assunto por encerrado. Outros - que estavam nas fotografias como figurantes, bem ao fundo - assumiram a protagonização de algumas temporadas e se mantiveram em evidência contrariando as expectativas com seu bom-caráter e lealdade. Há também aqueles que, assim como aqueles atores que voltam depois de anos às séries que lhe deram fama, ressurgem e reafirmam os laços de amizade - muitas vezes com ainda mais força do que antes - e aqueles que foram, juntamente com o arcanjo da Beatriz cantada por Chico Buarque, obrigados a passar o chapéu ao final da sessão muito antes do que deveriam.

E assim, como uma viagem sensorial - porque nela estão presentes cheiros, texturas e tons de voz - o ato de folhear um álbum de fotografias traz de volta os colegas de jardim de infância (e a professora apavorada porque um louco inventou ter plantado uma bomba na escola). Traz de volta a conversa durante o recreio em que um colega declarou-se seu melhor amigo (o mesmo melhor amigo que você nunca mais viu e de quem nunca mais teve notícia). Traz de volta o gosto de café com leite da garrafa térmica que você levava pro lanche. Traz de volta a brincadeira de "Flash Gordon" na rede e as conversas solitárias no alto de uma árvore derrubada para a construção de um prédio do governo (José Mauro de Vasconcellos lhe entenderia). As fotos lembram das festas juninas com os amigos e colegas de infância que desapareceram na névoa do tempo e os Natais festivos com a quantidade enorme de primos que se espalharam e só se encontram no Facebook. Também faz lembrar do amigo que era fã do personagem do Mário Gomes em "Guerra dos sexos" e encontrou a morte com dez anos de idade em um acidente de caminhão - em plenas férias de verão, o que o privou de uma despedida que, tão cedo na vida, poderia ter lhe marcado profundamente.

As fotos antigas - não tão antigas quanto aquelas que mostram tudo em um preto-e-branco real e não de filtro do Instagram, mas mesmo assim antigas o bastante pra dar aquela dorzinha no peito - o fazem lembrar que, por um período de tempo (longo ou curto, mas suficiente para marcar) você teve contato com pessoas com quem você adorava trocar ideias, com quem você ria até ficar sem fôlego, com quem você desabafava suas dores e pra quem você ofereceu o ombro em momentos de crise... e que depois simplesmente evaporaram, como em um passe de mágica. Lembram também de noites inesquecíveis à luz da lua, ao som da conversa barulhenta dos boêmios e da certeza absoluta de que todos eram imortais, jovens e invencíveis - com um copo de cerveja na mão e a trilha de "Trainspotting" nos ouvidos. A morte, a desesperança e o cinismo chegaram e levaram (quase) tudo embora. Dessas fotos ainda resta a amizade, mas à distância, essa cruel e insensível vilã que nem mesmo Gilberto Braga em seu auge conseguiria criar.

E o que dizer de uma foto em grupo, tirada em uma festa, com todos sorrindo, ébrios e predispostos à toda felicidade que o mundo puder oferecer? Uma foto em festa não é apenas o registro de um momento de alegria efêmera: é o registro de um tempo, de um lugar, de uma atmosfera, de uma dinâmica social... em tese, um "who's who" da galera. Nessa foto, aparentemente banal, está a síntese ilustrada da modernidade líquida de que falava Bauman: pessoas que hoje nos são caras e importantes e que, poucos anos depois, nos são, no mínimo, indiferentes. Diga-me rapidamente: quais desses casais ainda estão juntos? Quem ainda é amigo de quem? Quem ainda está vivo, diante de tanta violência e vírus malditos que surgem a cada dia? Quem ainda é seu amigo? E, por falar nisso, você ainda gosta da música que sempre tocava quando você frequentava esse lugar que é o cenário da foto? Ah, você nunca mais voltou lá... Mas lembra de cada risada que deu, cada lágrima que derramou, cada porre que tomou. Tudo isso veio por causa de uma foto, quem diria.

Folhear um álbum de retratos é, sem dúvida, um teste à emoção, hoje substituído pela tecnologia de  ver tudo digitalizado na tela de um computador ou de um celular. Mas essa nostalgia toda apenas serve para confirmar a teoria da seleção natural de Darwin: por mais que sintamos saudade de um tempo e de pessoas que foram importantes, são aquelas que permaneceram em nossas vidas apesar de tudo que realmente importam. Mesmo de longe. O tempo passa, é inevitável. Mas a amizade verdadeira, o carinho, a preocupação, são eternas. As pessoas que passaram são como mensageiros das peças de Shakespeare: entram em cena, dão seu recado e se despedem. Os atores centrais permanecem, independente do papel que representam em cada espetáculo. O importante é saber que outras fotos virão e, junto com elas, gente que pode ou não conquistar um papel fixo na sua novela, ao lado daqueles que você ama. O álbum do Facebook ou o Instagram vai estar sempre se renovando, mas o elenco fixo só é definido por você.

Esse post é dedicado ao meu elenco fixo, que eu amo como poucas coisas na vida:Paulinho, Márcia, Cândida, Bruna, Fernanda, Bia, Kátia, Cris e Eleonora. E como lembrança daqueles de quem sinto uma puta falta - por motivos diferentes: Paula e Fabiano.

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