FELIZES PARA SEMPRE?: PORNOGRAFIA OU UMA DESCULPA PARA DESTILAR PRECONCEITO?
Barbaridade, sim. Sou, como qualquer ser humano dotado de um mínimo de razão e sensibilidade, totalmente contra esse ato cruel, abjeto e torpe que é espancar uma mulher. Não só uma mulher, aliás. Crianças, bandidos, manifestantes, o que for. Violência não é uma opção, nunca foi e nunca será. Mas, como aspirante a escritor e dramaturgo - portanto com profundo senso estético e crítico a respeito de manifestações artísticas - não posso me calar diante de absurdos que são propalados aos quatro ventos nessa terra de ninguém chamada Internet. A minissérie "Felizes para sempre?" - percebam, o título acaba com um ponto de interrogação, o que por si só já diz muito a respeito de seus questionamentos - mostrou, nessa quinta-feira, 29/01, uma cena em que o personagem Joel (João Baldisserani) bate violentamente na esposa, Suzana (Caroline Abras), ao descobrir que ela dormiu com outro homem (apesar do casamento de ambos já ter acabado). Uma cena forte? Sim, sem dúvida. Mas apologia à violência contra a mulher? Jamais. Assim como qualquer obra de arte que se propõe a discussões, a minissérie apenas apontou o dedo para (mais) uma chaga que machuca a sociedade brasileira, assim como a corrupção e o consumo de drogas, também retratados na telinha. A televisão não está fazendo uso da violência para alavancar a audiência (ou talvez também esteja, qual o mal nisso, sendo ela uma empresa como outra qualquer?), mas sim, como poderoso instrumento que é, mostrando, de forma crua e chocante, uma realidade que nos cerca com uma regularidade impressionante. É função da arte - e no Brasil principalmente da teledramaturgia, com seu alcance imenso - refletir sua sociedade e botar o dedo na ferida. Não cabe a ela esconder debaixo do tapete, por pura conveniência, as mazelas e os podres. Joel não é o heroi da minissérie - ninguém é - e tampouco seus atos são justificáveis. E é exatamente essa conotação odiosa e arcaica que o programa quer denunciar. Só não vê quem não quer - ou quem tem implicância sistemática com qualquer coisa que venha da Globo, independente de sua capacidade de criar momentos únicos da telinha a despeito de sua ideologia política e econômica que não vou discutir aqui por pura falta de argumentos sólidos.
Argumentos sólidos, aliás, faltam àqueles que também acusam a série de ser "pornográfica". São as mesmas pessoas que curtem Valesca Popozuda no Facebook, que tocam Anitta nas festas infantis e que acham graça nas subcelebridades batizadas como "Peladona de Congonhas" que apontam o dedo para as cenas mais quentes de "Felizes para sempre?", um programa feito PARA ADULTOS, transmitido em um horário apropriado e, sejamos justos, com cenas de sexo fotografadas deslumbrantemente e dirigidas com extremo bom-gosto. Os diálogos são fortes? Talvez, para o padrão médio do público que acha graça das piadas homofóbicas de "Zorra total" e "Império". Mas são realistas, cortantes, eficazes para o desenvolvimento da trama. É uma trama em que o sexo está no cerne da questão, seria no mínimo hipócrita ignorá-lo. Por que o sexo pode ser mostrado na novela das nove apenas como "encheção de linguiça" e não pode aparecer às 23h? A resposta é simples: porque o sexo da novela não ameaça, não ofende os pruridos morais de quem o vê apenas como símbolo do romantismo. Sexo é carne, também. É desejo, é tesão puro e simples. E isso as senhoras de Santana não podem permitir caladas, é claro. Vai que no próximo capítulo mostrem um casal gay que se ama de verdade, não é mesmo?
Quando Thiago Martins espancou um gay até a morte na novela "Insensato coração" todos acharam corajoso do autor Gilberto Braga em falar da homofobia - e foi. Quando Débora Falabella interpretou a Mel em "O clone", de Glória Perez, todos aplaudiram a iniciativa da autora em levantar a questão do abuso de drogas. Quando o personagem de Bruno Gissoni fingia não conhecer a mãe adotiva que era negra em "Em família", de Manoel Carlos, o público viu na subtrama uma interessante discussão sobre o racismo. Todas são questões importantes e válidas. Por que, então, uma cena como a mostrada ontem - dentro de um contexto narrativo, com causas e consequências dramáticas e longe de possuir um teor de apologia - despertou tanto a ira de algumas pessoas? Simplesmente porque elas estão tão cegas e obcecadas com suas próprias ideologias de vida - se é da Globo eu sou contra, se tem cena de violência contra a mulher eu sou contra, se não fala dos temas que EU acho importantes eu sou contra - que não conseguem perceber que tudo na vida tem dois lados. A violência na TV pode chamar a atenção para a violência nos lares e não o contrário. Ninguém virou gay depois do beijo de "Amor à vida". Ninguém saiu matando a esmo depois de "Dupla identidade". Shakespeare não pode ser culpado pela morte de Dêsdemona. Chico não pode ser apedrejado junto com Geni. Nelson não pode ser acusado pela podridão da sociedade que ele apenas retratou. Machismo é algo nojento e imperdoável. Mas burrice e sectarismo também é.
PS - Fernando Meirelles está de parabéns. "Felizes para sempre?" é desde já um marco na teledramaturgia brasileira, a despeito de sua baixa audiência. E eu não sou macaco de auditório da Globo, porque tenho senso crítico e percebo a queda de qualidade de muitos de seus programas. Portanto, se alguém vai usar isso como argumento, nem perca tempo. O que a Globo empresa faz ou deixa de fazer não é o ponto aqui. Estou discutindo mérito artístico. E muito me admira que várias dessas pessoas tão cheias de moral que reclamam da minissérie se auto-denominem "artistas" - em tese pessoas que deveriam ser contra o sistema vigente e buscar sempre a revolução cultural e o liberalismo - sendo que nem conseguem julgar uma obra de arte sem deixar de lado o enorme peso de preconceito que carregam.