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A NOVA REPÚBLICA

Posted by Clenio on 20:48 in
Em "Precisamos falar sobre o Kevin", foi a desconstrução da sacralidade da relação entre mãe e filho, além de um estudo sobre a violência juvenil. Em "O mundo pós-aniversário", a dicotomia amor tranquilo com sabor de fruta mordida e a paixão avassaladora e irracional. Em "Dupla falta", a competitividade que ameaçava a felicidade conjugal. Em "Tempo é dinheiro", a crítica ao sistema médico norte-americano e ao conceito de felicidade individual. Em "O grande irmão", um estudo sobre a obesidade mórbida e o preconceito inerente à condição. Os livros da escritora Lionel Shriver nunca ficam na superfície quando tratam de assuntos polêmicos, mergulhando sem reserva em histórias repletas de personagens bem construídos e dotados de uma humanidade quase palpável. Não é diferente em "A nova república", escrito em 1998 e somente agora publicado no Brasil, pela Intrínseca: à primeira vista uma sátira política, o livro é uma deliciosa história sobre os perigos do culto à personalidade e das consequências nefastas da irresponsabilidade da mídia, equilibrando o senso apurado da autora em relação às fraquezas da humanidade com um humor sofisticado e crítico de uma autora que, a julgar pelo conjunto da obra, beira a misantropia

O protagonista físico de "A nova república" é Edgar Kellog, um adolescente obeso que, a custa de muito esforço e determinação, conseguiu perder peso (mas não o sentimento de autocrítica), entrar na elite de sua escola (a saber, a turma do rapaz mais popular) e, depois, tornar-se um advogado bem-sucedido e incapaz de lidar com o tédio. Disposto a uma vida menos aborrecida, ele decide largar o emprego e investir na carreira de jornalista - mesmo sabendo não ter um talento excepcional que o possa destacar da multidão de concorrentes. Sua grande chance de provar-se competente vem quando um pequeno jornal de Nova York o escala para cobrir os atos terroristas que vem sendo cometidos em uma península anexada à Portugal que deseja sua independência e luta ferozmente contra a imigração clandestina. Chegando à Barba - localidade fictícia mas cruelmente verossímil diante dos noticiários que constantemente destacam a violência dos extremistas - Kellog descobre que, mais do que repassar as notícias que estão cada vez mais escassas no território (os atentados misteriosamente estão interrompidos há algum tempo), seu maior desafio será substituir Barrington Saddler, o carismático repórter que fazia esse mesmo trabalho antes de sumir, sem deixar rastros, de uma hora para outra. Herói de toda a comunidade jornalística estrangeira reunida no país - até mesmo para aqueles que nutrem por ele um certo asco e uma grande inveja - Saddler deixou, atrás de si, uma série de anedotas particulares que fazem dele uma espécie de lenda local, e Kellogg volta a sofrer de sua síndrome de inferioridade, principalmente quando se apaixona pela bela Nicola (que mesmo casada aparentemente caiu nos braços do carismático repórter desaparecido).

Na tentativa de conquistar o mesmo prestígio e admiração de Saddler - e até mesmo o desprezo que ele desperta em alguns colegas - logo Kellogg está envolvido até o pescoço não apenas com o luxo no qual o jornalista vivia mas também com todas as complicadas negociações de paz entre o governo português e Tomás Verdade, o líder de um partido político que, apesar de negar, aparenta ter ligações bem estreitas com o terrorismo que vem causando tumulto em várias partes do mundo como forma de chamar a atenção para os problemas do país. Desesperado por uma chance com Nicola e pela possibilidade de sobressair-se profissionalmente - mais por vaidade do que por qualquer outro motivo mais nobre - o inseguro e constantemente inadequado novo jornalista acaba por descobrir, sem querer, uma forma de chamar a atenção de todo mundo, mesmo que isso tenha consequências imprevisíveis para todos que o rodeiam. Em pouco tempo, ele é o novo dono do pedaço - com tudo que isso tem de bom e de ruim.

Com uma narrativa ágil e inteligente - que não abre mão das frases longas e complexas que são uma espécie de marca registrada de sua literatura - Lionel Shriver consegue, além de criar uma trama fascinante e politicamente relevante (ainda hoje, mesmo 17 anos depois de sua escrita), surpreender o leitor com duas reviravoltas que, ao contrário de parecerem meros artifícios inócuos, mudam o rumo da história de forma esperta e plausível. Não convém contar, é lógico, quais são essas reviravoltas, mas pode-se dizer, sem prejuízo, que elas conseguem ter força suficiente para prender o leitor definitivamente até as páginas finais, de uma ironia monstruosa e bem-humorada, que reflete com contundência, o estado das coisas - tanto na imaginária Barba quanto no resto do mundo. Um livro magnífico (mais um!) de uma escritora que, aos poucos, vem se tornando essencial para os amantes da boa literatura.




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