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O MUNDO PÓS-ANIVERSÁRIO
Posted by Clenio
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22:10
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LITERATURA
Alguns livros, por mais bem escritos que sejam não passam disso: livros extremamente bem escritos. Outros, no entanto, além de não deixar a desejar em termos literários vão além, e conseguem permanecer na mente dos leitores mesmo depois de seu ponto final. Um exemplo claro disso é "O mundo pós-aniversário", obra-prima da escritora americana Lionel Shriver, que já havia deixado meio mundo de boca aberta com seu sensacional "Precisamos falar sobre o Kevin". Ao prescrutar a mente de uma mulher dividida entre a segurança de um casamento tranquilo e a busca por uma paixão avassaladora, a autora constrói um livro onde cada frase, cada detalhe, cada sentimento é verdadeiro, importante e crucial. De seu começo discreto até suas páginas finais arrebatadoras, o livro é fascinante, instigante e acima de tudo, genial.
A protagonista da obra, Irina McGovern, é uma ilustradora de livros infantis americana, que mora em Londres com o marido Lawrence Trainer, especialista em conflitos terroristas. Sua relação de quase uma década é estável, ainda que há muito tenham deixado de lado os arroubos do início do namoro. Uma noite, durante uma viagem de Lawrence, Irina vai jantar com um amigo do casal, o famoso jogador de sinuca Ramsey Acton, um homem sedutor, viril, bonito e que aparenta levar uma vida que ela mesma só pode imaginar através dos programas de TV. Um pouco alta de bebida, um pouco chapada de maconha e muito sedenta de emoções, Irina sente-se atraída por Ramsey e...
A partir daí, dois romances se desenvolvem ao mesmo tempo. Em um desdobramento da trama, Irina resistiu bravamente ao seu desejo repentino e continua levando sua vida normal com o marido. Em outra opção, ela levou sua lascívia momentânea a extremos e não apenas beijou Ramsey mas iniciou com ele um tórrido caso. O que acontece em cada uma das histórias é surpreendente e imprevisível e é impossível deixar o livro de lado até que ele acabe. Mas além de ele ser muito, mas muito bem escrito, também faz pensar. Bastante.
A dúvida que aflige Irina é, na verdade, uma dúvida que confunde qualquer ser humano provido de racionalidade. Todo mundo tem na cabeça que o segredo da felicidade é o equilíbrio, mas mostre-me uma pessoa totalmente equilibrada que eu te mostrarei uma pessoa mentirosa. Pelo menos em um momento da vida - aniversário, fim de ano, final de relacionamento - somos obrigados a encarar a temível pergunta: fiz as escolhas certas pra minha vida?
Em "A insustentável leveza do ser", Milan Kundera questiona "o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida?" Em "Crimes e pecados", Woody Allen afirma que "somos a soma de nossas escolhas." Não é de admirar que essa pressão em fazer as opções acertadas fique sobrevoando nossa cabeça como nuvens negras. Um beijo que você dá ou não, um emprego que aceita ou não, uma noite que prefere ficar em casa ao invés de sair pra dançar são encruzilhadas que podem transformar sua vida pra melhor ou pior. Não é de aterrorizar?
Aliás, melhor ou pior é relativo. Nenhum caminho é completamente feliz ou totalmente desprovido de alegrias. Altos e baixos ocorrem em qualquer rumo que nossas vidas tomem, independente do que fazemos ou deixamos de fazer. Não é à toa que Lionel Shriver escolheu a sinuca como o esporte de um de seus protagonistas: o jogo é uma metáfora perfeita para as dúvidas de Irina, uma vez que na sinuca uma simples jogada traz consequências definitivas para a partida, podendo inclusive definir um campeonato.
Já que não podemos ter a visão privilegiada do futuro, só nos resta assumir nossas escolhas, sofrendo ou sorrindo por causa delas. Hoje podemos querer uma paixão de bambear as pernas, amanhã talvez queiramos dormir de conchinha depois de assistir à novela das oito. Essa dicotomia paixão/segurança não é das mais fáceis. Escolha seu time e seja feliz com sua decisão.