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A SOLIDÃO DOS NÚMEROS PRIMOS / O ESTRANGEIRO
Posted by Clenio
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12:10
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LITERATURA
Confesso que fui meio relapso nas últimas semanas e não me dediquei à leitura como deveria ter feito. Talvez seja a ressaca do Oscar e a volta da minha obsessão por rever filmes clássicos - para comentários no blog www.clenio-umfilmepordia.blogspot.com (favor visitar e comentar) - ou talvez tenha sido preguiça, mesmo, mas não li tanto como no mês passado. Mesmo assim, não posso deixar de comentar as duas obras que me acompanharam ultimamente. São dois livros separados pela distância do tempo, das ambições e dos sentimentos que me provocaram.
O primeiro é um livro italiano recente, recomendado por amigos e que, apesar dos dois primeiros capítulos fascinantes, não chegou a me empolgar: "A solidão dos números primos", de Paolo Giordano (Ed. Rocco). O livro conta a história de amor?amizade?compreensão mútua? entre duas pessoas de certa forma marginais à sociedade (por escolhas pessoais e por traumas de infância). Alice é uma jovem que sofre de um grande complexo estético devido a um acidente de esqui que condenou-a a mancar pelo resto da vida. Mattia é um rapaz que se auto-mutila desde a ocasião em que foi responsável pelo desaparecimento da irmã gêmea com problemas mentais. Eles se conhecem na adolescência e tornam-se amigos, principalmente devido a suas deficiências emocionais e sentimentais e, mesmo seguindo suas vidas de maneiras diferentes (ele se forma em Matemática e vive em uma quase reclusão amorosa e ela se casa com o médico que tratou do câncer de sua mãe mesmo sabendo que o casamento está fadado ao fracasso) mantem-se sempre em contato um com o outro, mesmo que em pensamento.
Na verdade, "A solidão" é um livro que versa principalmente sobre "sentir-se" deslocado, desconfortável com o próprio corpo, a própria vida. Nenhum dos dois protagonistas do livro é feliz com o que tem ou o que sente, refugiando-se como podem em esconderijos pessoais: Mattia ama a Matemática mais do que os seres humanos e Alice tenta se enquadrar à sociedade com um casamento sem amor. Nem mesmo os coadjuvantes são exemplos de auto-aceitação: o amigo gay de Mattia e a colega sádica de Alice também sofrem por não enquadrar-se em padrões pré-estabelecidos (ele por sua sexualidade, ela por viver em um mundo fútil e de mentira). E talvez esse sentimento de inadequação seja o que une "A solidão dos números primos" ao outro livro que finalmente tive a decência de ler. Não me culpem, só agora li "O estrangeiro", de Albert Camus (Ed. Record).
Não sei porque, mas sempre adiava a leitura do clássico absoluto de Camus. Talvez achasse que era profundo demais, ou até mesmo chato. Mas certas coisas chegam na hora certa e, aproveitando a fase meio existencialista pela qual venho passando (questionando amizades, amores, estilos de vida, certezas até então tidas como absolutas, etc) resolvi encarar a aventura de Mersault, um argelino comum, que, devido a circunstâncias trágicas e quase surreais, acaba matando um árabe e vai a julgamento. A história contada por Camus (trágica, absurda, densa) é apenas o pano de fundo para divagações sobre a vida, sobre a liberdade, sobre o amor, sobre a falta de perspectiva do ser humano. Mersault é um ateu, um homem que não tem maiores amores ou afetos (nem mesmo a morte de sua mãe, que abre o romance e o atravessa como um eco infinito o abala consideravelmente) e que leva sua vida ao sabor do vento. Nem mesmo quando corre o sério risco de ser condenado à morte ele é capaz de levantar-se contra o destino. Para Mersault, a vida é pra ser levada, sem maiores esforços, sem grandes paixões. Na verdade, ele é apático perante tudo que lhe é apresentado, indiferente às coisas boas e más da existência, um homem levado pela correnteza dos acontecimentos, que não luta nem mesmo contra a possibilidade de ser executado.
"O estrangeiro" foi escrito em 1957, mas aparenta ter sido publicado ontem, tamanha a sua compreensão do sentimento de vazio que parece hoje ser moeda corrente. Todos aqueles que um dia, como eu, sentiram-se simplesmente cansados e/ou pessimistas, não podem deixar de identificar-se com seu último diálogo com um capelão:
"- Não tem então nenhuma esperança e consegue viver com o pensamento de que vai morrer todo por inteiro?
- Sim - respondi."
De certa forma "A solidão dos números primos" e "O estrangeiro" tem pontos em comum: são tristes, diria até pessimistas em relação à natureza do ser humano. Mas quem há de negar que a tristeza inspira muito mais do que a felicidade???