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OSCAR 2015 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Posted by Clenio on 19:25 in
E então, como sempre acontece há mais de oito décadas, o Oscar passou e deixou atrás de si um rastro de polêmicas, injustiças, acertos inesperados e correção de erros históricos - e, para não perder o hábito, cometendo outros que em edições seguintes deverão ser o assunto preferido dos fãs e especialistas. Entre mortos e feridos salvaram-se todos - os oito indicados a Melhor Filme saíram com pelo menos uma estatueta - mas ainda é difícil aceitar a implosão tão radical de "Boyhood, da infância à juventude", um dos favoritos ao prêmio máximo e que acabou ficando apenas com uma melancólica (e merecida) vitória na categoria de atriz coadjuvante, para Patricia Arquette - que, ao contrário das especulações do comentarista Arthur Xexéo, da Globo, não ganhou APENAS porque ficou à disposição do diretor Richard Linklater por doze anos: alguém talvez devesse explicar a ele a dificuldade de manter uma personagem coesa e coerente durante todo esse período de tempo e ainda assim soar natural e emocional. Aliás, seria bom também que a emissora decidisse de uma vez por todas se é do seu interesse ou não manter os direitos de transmissão da cerimônia, já que deixá-la pela metade enquanto não se dá ao trabalho de organizar sua programação para encaixá-la não é justo para o público que não tem acesso à TV a cabo. O mesmo pode ser dito a respeito de seus comentaristas: livres de José Wilker e suas opiniões equivocadas - "O roteiro de "Meia-noite em Paris" me parece feito às pressas!", soltou o ator e diretor de "Giovanni Improta", em 2012 - os espectadores tiveram que aguentar Maria Beltrão narrando a lista dos homenageados falecidos ano passado (e "traduzindo" suas funções na indústria), se atrapalhando na hora de explicar as brincadeiras do apresentador Neil Patrick Harris e passando informações erradas - segundo ela, o personagem de Michael Keaton em "Birdman" tenta reacender a carreira de ator estreando um MUSICAL na Broadway, como se Raymond Carver escrevesse partituras (e isso que ela mesma confessou ter assistido ao filme duas vezes "para entender". Imagina essa mulher em uma sessão de "Império dos sonhos", de David Lynch).

Afora essas aberrações da transmissão brasileira, a festa da Academia não foi tão previsível como prometia. Ok, todas as estatuetas de atuação foram confirmadas muito antes da noite de domingo (com a possível exceção de Eddie Redmayne, cuja premiação estava sofrendo a forte concorrência de Keaton), mas as quatro estatuetas (justíssimas) para "O Grande Hotel Budapeste" e o strike quase completo de "Birdman" em relação à "Boyhood" pegaram muita gente de surpresa. O prêmio de melhor direção, por exemplo, ficou pelo segundo ano consecutivo com um cineasta mexicano - ano passado o vencedor foi Alfonso Cuarón pelo superestimado "Gravidade", este ano quem venceu foi Alejandro González-Iñarrítu - enquanto quase todo mundo dava como certa a vitória de Richard Linklater e sua extraordinária trajetória familiar. Não deixou de ser previsível também a tentativa desesperada da Academia em apagar a imagem racista que deixou na ocasião da divulgação de sua lista de indicados deste ano, massacrada pela ausência de um número representativo de negros: os organizadores do show deram um jeito de colocar no palco, sempre que possível, casais mistos, como forma de apaziguar a consciência (e os comentários negativos que inevitavelmente pipocariam na cobertura do evento, tanto em tempo real graças às redes sociais, quanto nas semanas, meses e talvez anos posteriores, já que não é o tipo de deslize que costuma ser esquecido rapidamente nesses tempos politicamente corretos).

E, mais uma vez, as redes sociais se tornaram ferramenta essencial para que a festa estendesse suas horas de fama e glamour. Discursos marcantes como os de Patricia Arquette - que defendeu direitos iguais para homens e mulheres, foi aplaudidíssima por gente como Meryl Streep e Jennifer Lopez, ganhou manchetes e por fim desagradou algumas sempre insatisfeitas feministas - e do roteirista Graham Moore (de "O jogo da imitação") - que assumiu ter tentado o suicídio aos 16 anos por sentir-se diferente e incentivou os jovens a não desistirem de ter sua marca pessoal mesmo que pareça difícil no presente - deram à cerimônia momentos de emoção genuína e entraram para a história do Oscar, assim como a apresentação de Lady Gaga, homenageando os 50 anos de "A noviça rebelde" com um talento que muitos detratores desconheciam e emocionando a própria Julie Andrews. Assim como aconteceu com Pink no ano passado - cantando "Over the rainbow" para aplaudir "O mágico de Oz" - os produtores do show tentaram, com relativo sucesso, aproximar a nova geração da tradicional Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que por mais que tente, ainda não atingiu a modernidade que tanto necessita.


Por mais que sua escolha para melhor filme tenha sido uma obra pouco convencional em termos narrativos - pelo menos em comparação com dinossauros soporíferos como "O discurso do rei" - fica cada vez mais evidente aos fãs de cinema a encruzilhada a que os mais de 4000 membros da Academia estão chegando. É complicado aceitar que, juntamente com obras brilhantes como "O Grande Hotel Budapeste" e "Birdman" - que sacodem a maneira empoeirada de contar histórias - coisas como "Sniper americano" e "A teoria de tudo" sejam tão aplaudidas: o primeiro por seu discurso moralmente discutível (por mais que saibamos que o Oscar é uma festa DE e PARA americanos, fica difícil engolir a ideologia de mr. Eastwood e a opção dos votantes em selecioná-lo como um dos melhores filmes do ano) e o segundo por sua narrativa quadrada, sem brilho e que, não fosse a atuação de Eddie Redmayne, seria esquecida em menos de seis meses. Inclusive, já é mais do que hora de reavaliar a mania dos eleitores da Academia em privilegiar atores que interpretam deficientes físicos (ou papéis que exigem transformações visuais mais radicais) em detrimento de outras atuações menos óbvias. Este ano, por exemplo, a atuação minimalista de Arquette contrastava radicalmente com o trabalho de Redmayne - muito bom, sim, claro, mas que às vezes parece milimetricamente calculado para ganhar um Oscar. Essa incoerência é inevitável em um grupo tão vasto e idiossincrático como a Academia, mas seria um sonho ver, um dia, atuações simples e despretensiosas terem tanto valor quanto as mais ambiciosas - por melhores que elas sejam.


Agora, para finalizar, minhas opiniões a respeito dos vitoriosos:

FILME - "Birdman" mereceu. É um filme inteligente tanto na concepção quanto na realização e é também um sopro de ar fresco no embolorado sistema da Academia de premiar obras para o gosto médio. Não é um filme que agrada a todos, e a coragem de premiá-lo já é louvável. Mas, no fundo, é um filme que fala sobre Hollywood e sobre a arte da atuação, ou seja, é a Academia premiando ela mesma.

DIRETOR - Alejandro Gonzalez-Iñarrítu tirou o Oscar que todos achavam que ficaria com Richard Linklater. É coerente com a escolha de melhor filme - nos dois últimos anos as duas categorias foram separadas na hora H - mas seria uma bela homenagem à ousadia de Linklater em fazer um filme tão especial quanto "Boyhood", mesmo porque ele já merecia um prêmio desde "Antes do amanhecer". No entanto, se levarmos em conta que Iñarrítu tem no currículo filmes com "Amores brutos" e "21 gramas", constataremos que o Oscar está em ótimas mãos.

ATOR - Como dito antes, a atuação de Eddie Redmayne é precisa e impecável, mas parece preguiçoso por parte da Academia premiar sempre aquele ator que mais se transformou fisicamente para seu trabalho. Nessa linha de raciocínio, o desempenho de Michael Keaton ao criar um personagem perigosamente perto de sua própria realidade sem deixar que as linhas sejam ultrapassadas me soa muito mais interessante. Além do mais, encher "Birdman" de estatuetas e deixar de lado quem é seu corpo e sua alma é bastante incoerente.

ATRIZ - Julianne Moore merecia o Oscar desde sua primeira indicação, por "Boogie nights", em 1998. De lá pra cá brindou o público com uma série de atuações brilhantes e até hoje ninguém podia acreditar que até Sandra Bullock tinha uma estatueta na prateleira e ela não. Este ano, com dois trabalhos irretocáveis - em "Mapas para as estrelas", que lhe premiou em Cannes, e "Para sempre Alice" - chegou finalmente a sua vez. Ganhou pela excelência da atuação, claro, mas também como reparação de um erro que nunca deveria ter sido cometido.

COADJUVANTES - Patricia Arquette e JK Simmons sempre foram favoritos às estatuetas de coadjuvantes, e, como tal, foram as apostas mais certas em suas categorias. Ela deu humanidade e unidade ao filme de Linklater e ele deixou de ser o chefe do Homem-aranha para tornar-se uma ator respeitado. Uma pena, porém, que Edward Norton, mais uma vez, ficou a ver navios.

ROTEIROS - "Birdman" sagrou-se vencedor em uma categoria de nomes fortes, mas é impossível negar que a escolha da Academia foi certeira. Quanto a "O jogo da imitação", houve divergências entre crítica, público e votantes. Porém, o roteiro de Graham Moore é bem escrito, forte e emocionante - e rendeu um dos melhores discursos de agradecimento do ano. Só isso - e o fato de ter chutado "Sniper americano" para seu devido lugar de coadjuvante - já é digno de nota.

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SELMA - UMA LUTA PELA IGUALDADE

Posted by Clenio on 20:43 in
Em um ano marcado por omissões escandalosas, indicações discutíveis e surpresas um tanto desagradáveis na lista de indicados ao Oscar - pensando bem, em qual ano isso não acontece? - talvez a questão mais debatida dentre os fãs de cinema e os ditos "especialistas de plantão" diz respeito à esnobada quase geral dada ao filme "Selma", que muitos julgavam merecedor de figurar entre os destaques da cerimônia do próximo dia 22. Mesmo indicada na categoria principal, a produção dirigida por Ava DuVernay não conseguiu conquistar os votos dos eleitores da Academia em outros páreos importantes, como direção (Ava seria a primeira mulher afro-americana a concorrer ao Oscar) e ator (David Oyelowo), o que acarretou uma interminável discussão sobre a falta de miscigenação racial na festa mais importante do cinema. Enquanto alguns creditavam a omissão à Paramount por não ter enviado cópias do filme aos eleitores a tempo da votação, outros não hesitavam em dizer que tudo não passava de racismo puro e simples por parte da Academia e de Hollywood em si. O que ninguém cogitou pensar é na possibilidade de o filme - apesar de suas inúmeras qualidades e importância histórica e social - não ser tão forte quanto os acontecimentos que retrata.

É lógico que "Selma" é infinitamente superior a aberrações demagógicas como "Sniper americano" e ao filme-fórmula "A teoria de tudo" - ambos sintomaticamente indicados na principal categoria mas também deixados de fora na briga por diretor - mas é muito provável que os fãs mais radicais do filme não percebam que, por trás de todas as emocionantes e chocantes cenas que mostram os confrontos raciais que sacudiram os EUA nos anos 60, por trás da performance discreta e convincente de David Oyelowo como Martin Luther King e por trás da força emocional da história contada, não existe um roteiro consistente a ponto de esconder o ritmo claudicante, os tempos mortos e, pior ainda, a edição pouco criativa. A cada sequência empolgante, que leva o espectador para dentro da história, como se fosse participante ativo do movimento social que está transformando um país - e por consequência, o mundo todo - existem várias outras sonolentas, que o afastam emocionalmente. Toda vez que Martin Luther King vai ao encontro do Presidente Lyndon Johnson (Tom Wilkinson) ou este debate a situação com o governador do Alabama, George Wallace (Tim Roth), o filme perde o pique. São momentos importantes para a ação, claro, mas que contrastam radicalmente com outros de grande intensidade dramática e que comprometem o ritmo do filme como um todo.

Quando DuVernay mostra ao espectador a violência a que os negros - e até mesmo os brancos que compravam sua briga - eram submetidos simplesmente porque lutavam pelo direito básico ao voto, seu filme cresce, se agiganta, emociona às lágrimas. Quando se dedica a mostrar a forma idealista de Luther King lutar contra o preconceito, sua obra se ilumina e inspira. Quando dá espaço a seus atores - em especial Oyelowo, Tim Roth e sua produtora Oprah Winfrey em pequena participação - brilharem, seu trabalho conquista. Mas ao final da sessão, quando a sensação de injustiça e revolta passam, não sobra muito mais. Falta a "Selma" aquele algo mais que faz de um bom filme um filme inesquecível. É forte, é intenso e é imprescindível historicamente. Mas não faz jus a toda a polêmica que criou em torno de suas duas indicações ao Oscar. Ser lembrado como um dos indicados a melhor filme do ano já é bom o bastante.

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PARA SEMPRE ALICE

Posted by Clenio on 01:18 in
Pode parecer brincadeira que até gente como Sandra Bullock tenha um Oscar em casa e Julianne Moore ainda esteja na lista das eternas perdedoras. Indicada em quatro ocasiões - em 2003 chegou a concorrer tanto na categoria principal por "Longe do paraíso" quanto na de coadjuvante por "As horas" - parece que finalmente chegou a hora em que seu nome será vinculado à expressão "Academy Award winner". O responsável por tal feito é seu desempenho fenomenal como uma linguista de 50 anos que se descobre portadora de um tipo raro do mal de Alzheimer no delicado "Para sempre Alice". No mesmo ano em que foi premiada no Festival de Cannes pelo filme "Mapas para as estrelas", de David Cronenberg - onde vive uma atriz frustrada tentando dar a volta por cima - Moore deixa o espectador com o coração nas mãos, com uma interpretação nunca aquém de perfeita. Sem apelar para o melodrama excessivo e evitando com discrição as armadilhas de um papel tão propenso a exageros, ela brilha justamente pela economia dramática com que transmite toda a dor e a angústia de uma mulher que depende de seu cérebro ao perceber que justamente ele a está destruindo.

Alice Howland é uma professora de linguística renomada e respeitada. Bem casada com John (Alec Baldwin), por quem ainda é apaixonada, mãe de três filhos e a caminho de tornar-se avó, ela, aos 50 anos, começa a perceber pequenos mas assustadores sintomas de perda de memória. Julgando ser apenas um stress passageiro, ela acaba recebendo o diagnóstico de um tipo precoce de Alzheimer. Contando com o apoio da família - inclusive da filha rebelde, Lydia (Kristen Stewart surpreendentemente deixando de lado a apatia que lhe é característica) - ela aos poucos vai mergulhando nas águas traiçoeiras da doença, perdendo todas as referências de sua vida, desde o caminho do banheiro até o nome dos filhos. Sua força de vontade, porém, faz com que ela insista em manter o controle sobre a própria vida, mesmo quando tudo parece fugir de seus domínios.

Mesmo que não fuja do previsível e por muitas vezes quase escorregue nos clichês - fato que o talento de Moore equilibra com maestria - é admirável a forma como os diretores de "Para sempre Alice" conseguem prender a atenção da plateia do início ao fim, conduzindo-a delicadamente para dentro do pesadelo da protagonista aos poucos, gradualmente como a doença que lhe ataca. É poético, inclusive, como a escuridão de seu mal é iluminado pela aproximação com as pessoas a quem ama, que lhe servirão de apoio em um caminho sem volta - e que é retratado por vezes de forma cruel e aterrorizante. Em uma sequência especialmente aterrorizante, por exemplo, uma Alice já em fase avançada da doença encontra um vídeo gravado por ela mesma em tempos menos desesperados e, seguindo suas instruções, vai em direção ao suicídio: ao público resta prender a respiração no aguardo do desfecho da sufocante situação. Esse controle no ritmo e na opção por ater-se principalmente nas reações das pessoas mais próximas à Alice são dois acertos do roteiro, assim como a escolha de Alec Baldwin para viver John, o marido da protagonista: poucas vezes Baldwin esteve tão bem no cinema dramático, deixando antever um lado sensível e sério que suas atuações cômicas escondem tão bem.

Não deixa de ser comovente saber que um dos diretores de "Para sempre Alice", Richard Glatzer, sofre de ASL, um tipo de esclerose que não o deixa falar e fez com que ele comandasse as cenas através de mensagens escritas em um iPad. Junto com seu companheiro de trabalho, Wash Westmoreland, ele realizou um filme sensível e emocionante que, em mãos menos competentes, cairia facilmente no piegas. Ancorado no trabalho excepcional de Julianne Moore, seu filme já é um vitorioso antes mesmo da cerimônia do Oscar justamente por tratar de um assunto tão triste sem cair no tom depressivo ou negativo. É triste, mas jamais exageradamente sentimental.

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DOIS DIAS, UMA NOITE

Posted by Clenio on 21:24 in
Em 2008, todo mundo esperava que Julie Christie saísse da cerimônia de entrega do Oscar com a estatueta de melhor atriz, por seu fantástico trabalho em "Longe dela", da também atriz Sarah Polley. Para surpresa dos espectadores, porém, a Academia deixou de lado sua tendência em relegar atores estrangeiros a meros coadjuvantes e concedeu sua honra máxima a uma francesa da qual poucos haviam ouvido falar até então: por seu desempenho emocionante como a mais famosa cantora de seu pais, no filme "Piaf, um hino ao amor", Marion Cottilard não só faturou o prêmio mais cobiçado do cinema, mas tornou-se uma das atrizes mais requisitadas de Hollywood. Porém, mesmo trabalhando com nomes como Woody Allen, Christopher Nolan e Michael Mann, a bela nunca deixou de lado os filmes menos comerciais (aos olhos da indústria americana) e marcou presença em produções fortes como "Ferrugem e osso" - na qual interpreta uma treinadora de golfinhos que perde as duas pernas em um acidente de trabalho - e "Dois dias, uma noite", filme dirigido pelos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne. Sua performance neste último - com direito a sotaque belga, rosto lavado e a complexidade dramática de interpretar uma mulher comum - fizeram com que novamente os eleitores da Academia se curvassem a seu talento superlativo: Cottilard é a única das indicadas ao Oscar deste ano por um filme não falado em inglês - e se não fosse o favoritismo absoluto de Julianne Moore como uma mulher diagnosticada com Alzheimer em "Para sempre Alice" (coincidentemente a mesma doença da qual sofria Julie Christie em "Longe dela"), não seria nada injusto que um segundo homenzinho dourado fosse enfeitar sua prateleira.

Quem conhece a obra dos irmãos Dardenne - minimalista, simples e que sempre utiliza o mais banal dos acontecimentos como matéria-prima para seu trabalho - sabe bem o que esperar de "Dois dias, uma noite", a dramática odisseia de uma mulher em busca de um dos direitos mais básicos do ser humano: o de trabalhar. Sem buscar em seu roteiro o caminho mais fácil do melodrama, os diretores/roteiristas conseguem, ao retratar a via-crúcis de sua protagonista, expor ao mesmo tempo a crise econômica pela qual passa a Europa, a tendência cada vez mais forte ao individualismo e, em um registro mais esperançoso, a solidariedade que ainda sobrevive, impávida, onde menos se espera. Quase em tempo real, eles conduzem o espectador como testemunha ocular de um caminho de humilhação, desespero, decepção e redenção que somente um cinema humanista e desprovido de quaisquer artifícios sentimentaloides pode oferecer. É sofrido, é triste, é quase desconfortável. Mas é, acima de tudo, grandioso em sua extrema simplicidade.

Em uma atuação visceral que justifica plenamente sua indicação ao Oscar, Marion Cottilard vive (literalmente) Sandra Bya, uma jovem mãe de família que afastou-se do trabalho para tratar de uma depressão profunda e que, às vésperas de seu retorno, descobre que será demitida como forma de controlar os gastos da empresa - e gerar um bônus extra de 1000 euros para seus dezesseis colegas remanescentes, cuja votação (13x3) decidiu por sua dispensa. Sabendo da possibilidade de uma nova eleição na segunda-feira, ela resolve, então, passar o fim-de-semana inteiro visitando todos os seus companheiros de trabalho com a intenção de fazê-los mudar de ideia e, por consequência, lhe devolver a chance de um emprego que é essencial para sua família. No caminho, ela tanto percebe o egoísmo de alguns quanto as dificuldades enfrentadas por outros, a quem o bônus de sua demissão poderá ser uma forma de respirar diante das dificuldades financeiras.

Quem só gosta de cinema americano, com seu ritmo ágil e sua narrativa quase anfetamínica, deve passar ao largo de "Dois dias, uma noite". Sem pressa ao contar sua história, dando a cada cena, a cada diálogo e cada personagem o tempo necessário para que seja melhor digerido pela plateia, os irmãos Dardenne fazem de seu filme uma experiência única e dolorosa, ainda que encerrada com uma nota de otimismo capaz de deixar o espectador com um sorriso no rosto e paz no coração. E de quantos filmes vindos de Hollywood se pode dizer o mesmo?

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GAROTA EXEMPLAR

Posted by Clenio on 18:23 in
Qualquer fã de bom cinema sabe que o nome de David Fincher nos créditos de um filme já é garantia de qualidade, fato que vem se mostrando uma verdade absoluta desde sua estreia no subestimado "Alien 3" (92) - e culminou com duas indicações ao Oscar de melhor diretor em três anos, por "O curioso caso de Benjamin Button" (08) e "A rede social" (10). Dono de um estilo sóbrio e inteligente de contar uma história e transmitir através de imagens sua visão particular de cada trama - herança de sua experiência como diretor de videoclipes igualmente marcantes, como "Vogue" e "Express yourself", de Madonna e "Freedom '90", de George Michael - Fincher também é conhecido por escolher roteiros que mexem com o lado sombrio da natureza humana. Foi assim com o inesquecível "Seven, os sete crimes capitais" (95), com o pouco visto "Vidas em jogo" (97), o exemplar "Zodíaco" (08) e agora com o impecável "Garota exemplar", um dos melhores filmes de 2014, injustamente relegado pelo Oscar a uma única (e justa) indicação ao prêmio de melhor atriz. Engenhosa, envolvente e surpreendente, a adaptação do romance de Gillian Flynn (também autora do roteiro) fez por merecer a bilheteria de mais de 160 milhões de dólares arrecadados somente no mercado norte-americano.

O ideal a respeito de "Garota exemplar" é embarcar na trama sem saber mais do que o essencial: no dia em que está comemorando cinco anos de casada, a bela e doce Amy Dunne (Rosamunde Pike, um achado) desaparece misteriosamente da casa onde vive com o marido, Nick (Ben Affleck, surpreendentemente bem em cena). Investigações policiais levam a crer que ela foi assassinada, e não demora para que a mídia transforme a ocasião em um circo, acusando o rapaz mesmo sem ter qualquer tipo de prova a respeito de sua culpa. Para provar sua inocência, ele conta apenas com o apoio de sua irmã gêmea, Margo (Carrie Coon), já que aos poucos novos e estarrecedores fatos passam a acumular-se contra ele.

Basta esse pontapé inicial, dado com calma e economia de informações para que o público fique hipnotizado pelo extraordinário filme de Fincher, que, indo e vindo no tempo (em uma montagem espetacular), vai nutrindo a plateia com revelações chocantes sobre a história de amor entre Nick e Amy - e com isso vai levando a trama a direções inesperadas. Desnudando sem dó nem piedade o jogo de aparências que corrói a instituição matrimonial ao mesmo tempo em que critica a manipulação da mídia e a necessidade quase doentia por encaixar-se nos moldes de uma sociedade sedenta por padrões inócuos - o condomínio onde moram os Dunne, por exemplo, e a série de livros infantis escritos pela mãe de Amy, que servem de lição de moral para as crianças - tanto o livro de Flynn quanto o filme de Fincher ultrapassam os limites de bom cinema, entregando à audiência não apenas um entretenimento de primeira qualidade, mas também algo que se mantém presente na memória por um bom tempo após os créditos finais.

Independente, porém, da repercussão moral e das discussões que possa suscitar, "Garota exemplar" é um filmaço. Extremamente bem dirigido - Fincher é conhecido pelo cuidado quase excessivo por cada enquadramento - e contado com um ritmo próprio e sem atropelos (característica que pode incomodar aos mais impacientes, mas que é plenamente justificada quando o quebra-cabeças é finalmente completado), é também um exemplo de narrativa, onde todas as peças tem importância fundamental para o resultado, desde a discreta trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross (vencedores do Oscar por "A rede social") até a inteligente edição do colaborador habitual do cineasta, Jeff Cronenweth - passando, é claro, pela atuação fascinante de Rosamunde Pike, que passou por cima de nomes consagrados como Reese Witherspoon, Natalie Portman, Charlize Theron, Jessica Chastain e Rooney Mara para ficar com o papel da misteriosa Amy Dunne - que lhe rendeu uma merecida indicação ao Oscar. Ao criar várias versões da mesma (e complexa) personagem, a atriz inglesa mostra que nem só de grandes e conhecidos nomes é feito o cinema de hoje em dia. E é certo que, depois dessa demonstração de imenso talento, ela já está no primeiro time das atrizes hollywoodianas.

Para ler mais sobre os filmes de David Fincher, acompanhe as postagens em "Um filme por dia".

http://www.clenio-umfilmepordia.blogspot.com.br/search/label/DAVID%20FINCHER

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SNIPER AMERICANO

Posted by Clenio on 20:44 in
Mais do que louvar suas qualidades cinematográficas, as seis inesperadas indicações ao Oscar de "Sniper americano", novo filme de Clint Eastwood, deixam claras três tendências bastante óbvias entre os eleitores da Academia de Hollywood. Primeira: seu conservadorismo continua em alta, assim como seu patriotismo exarcebado e sua quedinha pouco disfarçada por histórias que louvem os "heróis" norte-americanos. Segunda: não importa o filme que faça, o veterano Eastwood ainda tem prestígio de sobra junto à ala mais tradicional dos votantes - e isso que seu musical "Jersey Boys", lançado também este ano, foi severamente ignorado. E terceira mas não menos importante: sua paixão por Bradley Cooper, que, com seu jeito de galã e esforço para tornar-se um ator sério, caiu como uma luva nos planos da indústria de construir um novo astro à moda antiga - só isso explica suas três indicações consecutivas (e sem sentido) à estatueta. Ao escolher o filme de Clint - um drama de guerra sem nenhuma novidade em relação a dezenas de outras produções de temática similar que volta e meia surgem nas telas - como um dos melhores do ano em detrimento de outros trabalhos menos previsíveis e mais ousados, a Academia também deixa claro que, por trás da aparente onda de renovação com filmes como "Boyhood" e "O Grande Hotel Budapeste", ela ainda é uma organização arraigada a seus valores mais arcaicos - e o sucesso acachapante de bilheteria afirma que o público ianque também está seguindo essas tendências ao pé da letra.

Não que "Sniper americano" - um título em português no mínimo inadequado - seja um filme ruim, muito pelo contrário. Tecnicamente impecável - foi indicado ao Oscar nas duas categorias sonoras e ainda na de edição - e contando com uma atuação inspirada de Bradley Cooper (que ganhou peso para o papel, como manda a tradição do "método") no papel principal, ele é capaz de encantar aos fãs do gênero, com sequências bem orquestradas e filmadas com uma segurança que somente a experiência pode trazer. No entanto, ao lado dessa qualidade técnica caminha um roteiro pouco inspirado - quase preguiçoso - que não se decide em qual foco dar à sua narrativa. Em um momento, estamos em pleno Iraque, ao lado do protagonista Chris Kyle, lutando contra o inimigo e não se deixando comover nem mesmo com a pouca idade das possíveis ameaças. Em seguida, estamos testemunhando sua vida doméstica ao lado da esposa, Taya (Sienna Miller, irreconhecível), e tentando adaptar-se à rotina familiar - e encontrando dificuldades em deixar a guerra para trás. Porém, o que poderia ser interessante e dar-lhe uma densidade que o separasse dos outros filmes do gênero - essa quase incompetência em lidar com o dia-a-dia de um herói nacional, com fantasmas a lhe atormentar a existência - não é explorado a contento. Interessa mais a Eastwood tiroteios e uma câmera nervosa do que a complexidade psicológica do personagem. A Academia e a audiência gostaram. Mas para quem já está quase saturado de ver filmes de guerra quase idênticos talvez seja um pouco cansativo demais.

Não é provável que "Sniper americano" saia da cerimônia do próximo domingo com alguma estatueta - talvez nas categorias técnicas ele saia vencedor, mas mesmo assim injustamente. Mas só o fato de estar concorrendo ao prêmio máximo da noite já demonstra que, apesar de tentar parecer moderninha, a Academia ainda continua a mesma velhinha de 86 anos de idade que gosta sempre das mesmas histórias requentadas e inofensivas.

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O JUIZ

Posted by Clenio on 21:38 in
Para marcar a estreia de sua produtora em sociedade com a mulher, Susan, o ator Robert Downey Jr. deixou de lado os heroicos personagens que vinham marcando sua carreira nos últimos anos - Sherlock Holmes e Homem de Ferro - para viver um homem comum, rodeado de problemas pessoais e que se vê, inesperadamente, diante de circunstâncias que não apenas o desafiam no lado profissional mas principalmente o obrigam a lidar com fatos familiares de um passado pouco agradável. Primeiro filme dramático do cineasta David Dobkin - que tem no currículo as comédias "Penetras bons de bico" e "Eu queria ter a sua vida" - e um filme de tribunal com todos os ingredientes necessários para conquistar a atenção do público, "O juiz" estreou sem muito alarde nos EUA, mas recobrou o fôlego com a indicação de Robert Duvall ao Oscar de coadjuvante. Mesmo que o veterano ator tenha poucas chances de faturar sua segunda estatueta - a primeira veio em 1983 por "A força do carinho" - seu desempenho como Joseph Palmer, o rígido juiz de uma pequena cidade do interior que é acusado de assassinato e passa a ser defendido pelo filho com quem mantém uma relação de estranhamento, é o maior destaque de um filme correto, mas que sofre de uma narrativa simples e esquemática ao extremo.

Downey Jr., bom ator como sempre, vive Hank Palmer, um bem-sucedido advogado de Chicago, nem sempre afeito às regras éticas que deveriam reger sua profissão. No meio de um caso importante, ele recebe a notícia da morte de sua mãe, a quem não vê há anos, e viaja para acompanhar seu funeral. Passando por um complicado caso de divórcio, Hank não tem a menor importância de ficar com sua família, mas vê seus planos mudarem radicalmente quando seu pai - respeitado e, sem que ninguém saiba, morrendo de câncer - é acusado de matar um homem a quem havia condenado no passado. Mesmo contra a vontade do veterano jurista, com quem tem uma relação complicada que remete à sua juventude rebelde, ele assume sua defesa, o que acaba por forçá-los a uma nova etapa de seu relacionamento.

Equilibrando - nem sempre com muito sucesso - o drama familiar com a trama policial que envolve o julgamento, "O juiz" peca em muitos momentos por desviar o foco da história com tramas paralelas pouco interessantes, como aquela que envolve Hank com uma namorada de adolescência, Samantha (Vera Farmiga). Esses desvios da rota central não apenas tornam o filme mais longo do que o necessário - quase duas horas e meia de projeção - como enfraquecem o que a obra tem de mais forte (ainda que um tanto clichê): o relacionamento entre pai e filho, afastados pelos temperamentos arredios e reunidos pela paixão pela lei e pelo direito. Robert Duvall dá mais um show como o independente e por vezes seco Joseph Palmer, um homem forte que, por forças das circunstâncias acaba dependendo justamente do filho com quem tem mais arestas a aparar, e Downey Jr. comprova o que todo mundo sempre soube: é um ator que sai-se bem tanto em blockbusters descerebrados quanto em dramas que exigem mais do que simplesmente efeitos visuais.

Um filme capaz de agradar a todos os tipos de público, "O juiz" não ofende a inteligência de ninguém e pode até emocionar aos mais sensíveis. Não é um grande filme, mas é um digno representante do gênero.

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FOXCATCHER - A HISTÓRIA QUE CHOCOU O MUNDO

Posted by Clenio on 20:01 in
Se existe um caminho para conquistar o coração dos eleitores da Academia, esse caminho deve ser do conhecimento do diretor Bennett Miller. Desde que lançou seu primeiro longa - a cinebiografia "Capote", que contava com a brilhante atuação de Philip Seymour Hoffman como o famoso autor de "À sangue frio" - o cineasta nova-iorquino viu seus três filmes conquistarem importantes indicações ao Oscar: o primeiro e "O homem que mudou o jogo" - estrelado por Brad Pitt e Jonah Hill - chegaram mesmo a concorrer à estatueta de melhor filme, apesar da qualidade apenas razoável do segundo. Seu novo trabalho (e novamente uma história verdadeira) é "Foxcatcher, uma história que chocou o mundo", que, apesar de não ter alcançado a glória de ser indicado na categoria de de melhor filme, está no páreo de direção, ator (um irreconhecível Steve Carrell), ator coadjuvante (Mark Ruffalo) e roteiro original. Tido como um dos favoritos às estatuetas desde que estreou no Festival de Cannes, em maio passado, o filme foi aos poucos perdendo fôlego e, se conseguiu atravessar a cobiçada linha que separa as especulações da realidade é porque conta com um invejável conjunto de atores, todos eles em momento de grande inspiração. No cômputo geral, "Foxcacther" está muito longe de ser o filme memorável que poderia ser.

O subtítulo nacional - "A história que chocou o mundo" - já é um exagero desproporcional, uma vez que, antes da estreia mundial, pouca gente sabia a respeito da tragédia que deu origem ao roteiro (ao menos fora dos EUA, onde os personagens eram relativamente famosos), mas não é a pior coisa do filme de Miller, que sofre de uma direção distante e impessoal que lhe dá um equivocado tom de semi-documentário - uma opção discutível que acaba por afastar o envolvimento emocional do espectador com uma história já recheada de personagens ambíguos e frios. Mesmo que em certos momentos crie algumas cenas de inegável impacto visual - que acentuam o viés melancólico e denso da trama - o cineasta incorre no erro de evitar qualquer mudança no ritmo quase letárgico de sua narração, dando a todos os acontecimentos mostrados a mesma importância dramática. O que poderia ser inteligente - ir montando aos poucos um quebra-cabeças de peças aparentemente desconexas - acaba por se mostrar apenas aborrecido quando se percebe, ao final, que todos aqueles momentos silenciosos e repetitivos não ajudaram em nada a entender o principal: o que levou o milionário John Du Pont a tomar a drástica atitude que inspirou o subtítulo em português.

Não saber muito a respeito da trama ajuda a manter o clima de suspense que, de certa forma, é um dos trunfos de "Foxcatcher" - mesmo que não se conheça a história fica claro desde o princípio que algo pouco positivo irá resultar da aproximação dos personagens, principalmente porque, reconheçamos, a trilha sonora e a edição soturna deem dicas a esse respeito. Tudo começa quando o jovem Mark Schultz (Channing Tatum), lutador olímpico que vive de treinos e palestras motivacionais a estudantes enfadados, é convidado a visitar a mansão do milionário John Du Pont (Steve Carrell sem o menor tique cômico), que vive isolado em uma gigantesca propriedade e tem como sonho criar uma vitoriosa equipe norte-americana de lutadores. Ele mesmo um treinador e lutador diletante, Du Pont convence o jovem a juntar-se a outros atletas, dando-lhe um lugar para morar, comida, boas condições de treino e um pagamento generoso. A única pedra em seu caminho é Dave (Mark Ruffalo), irmão mais velho e antigo técnico de Mark, com quem mantém uma forte relação de carinho familiar. A união entre os dois passa a despertar um misto de inveja e admiração no multi-milionário - que não tem o melhor dos relacionamentos com a mãe (Vanessa Redgrave) e leva uma vida solitária - que resolve, então, chamar Dave para juntar-se a eles em seu projeto.

Contando sua história sem pressa e muitas vezes abusando da paciência do público, Bennett Miller tem como maior trunfo sua trinca de atores centrais. Enquanto Mark Ruffalo já é reconhecido por seu talento dramático graças a uma série de bons filmes - que incluem a comédia dramática "Minhas mães e meu pai", que lhe deram sua primeira indicação ao Oscar, em 2011 - a plateia é pega de surpresa principalmente pelo trabalho de Steve Carrell e Channing Tatum. Tatum, mais conhecido por exibir o físico privilegiado em dramas românticos como "Querido John" e comédias bobas como "Anjos da lei", ainda não é um grande ator, mas seu esforço em crescer artisticamente é visível na construção corporal de seu personagem, que foge do estereótipo do galã sedutor com seu andar pesado, seu olhar perdido e sua forma quase anestesiada de falar. E Steve Carrell merece com todo o louvor sua indicação à estatueta de melhor ator, apresentando um desenvolvimento exemplar de personagem: mesmo que pouco se explique a respeito de sua natureza no roteiro, ele consegue, através do olhar vazio e das expressões faciais destituídas de qualquer emoção, arrepiar e emocionar na medida certa. Em nenhum momento somos lembrados que, por trás da competente maquiagem e da voz monocórdia, existe o genial ator cômico do seriado "The Office" e da refilmagem de "Agente 86". Ponto para ele.

No fim das contas, "Foxcatcher" é um trabalho apenas ok de um diretor que caiu inexplicavelmente nas graças da Academia. A intenção do cineasta em retratar o mundo da luta como uma espécie de culto - um mundo à parte, isolado e cheio de regras - cai no vazio diante de um roteiro que deixa mais à imaginação do público do que deveria e o final anti-climático perde a oportunidade de chocar ou surpreender para parecer apenas mais um acontecimento banal como um treino ou uma corrida matinal. Nem mesmo as possibilidades homoeróticas da história são levantadas, tornando tudo apenas um exercício sonolento e quase arrogante. Ainda bem que tem seus atores.




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BOYHOOD - DA INFÂNCIA À JUVENTUDE

Posted by Clenio on 21:18 in
A sinopse pode não ser muito empolgante àqueles que consideram o cinema como a arte do entretenimento e do escapismo puro e simples: o dia-a-dia de um menino comum, a partir dos seus cinco anos de idade até sua entrada na universidade, aos 18 - mostrando, em pouco mais de duas horas e meia de projeção, problemas banais e aparentemente desinteressantes, como a relação com os pais, as dúvidas do começo da adolescência e a necessidade de lidar com as mudanças que fatalmente ocorrem com o passar do tempo. Por que, então, "Boyhood - da infância à juventude", tornou-se, de um projeto que corria o risco de ser apenas mais uma curiosidade de pé de página na história do cinema ao favorito do Oscar 2015, concorrendo a cinco estatuetas e com boas chances de sair premiado como o melhor filme do ano? Pode-se arriscar várias respostas - desde a criatividade da ideia de acompanhar o personagem literalmente por 13 anos, filmando poucos minutos a cada ano, com o mesmo elenco, até o endosso de personalidades tão distintas quanto o presidente Barack Obama e o cineasta Christopher Nolan. Mas o fato puro e simples é que a maior qualidade do filme de Richard Linklater - já vencedor do Golden Globe deste ano - é justamente a coragem do diretor em assinar uma obra que, ao contrário de tantas outras mais ambiciosas e enfeitadas com inúmeros artifícios narrativos, fala da vida como ela é, sem filtros, sem armadilhas melodramáticas e sem o apoio de cenas grandiloquentes. "Boyhood" é a essência da simplicidade. Um oásis para uns, um tédio para outros.

Não é a primeira vez que Linklater se dedica a examinar os efeitos do tempo sobre seus personagens. Fez isso magistralmente na trilogia estrelada por Ethan Hawke e Julie Delpy - "Antes do amanhecer", "Antes do pôr-do-sol" e "Antes da meia-noite" - que acompanhava um casal desde seu primeiro encontro em um trem que atravessava a Europa, em 1995, até a crise matrimonial que os obrigava a encarar a dura realidade de sua vida familiar, em 2013. Em "Boyhood" ele foi ainda mais radical, filmando a cada ano cerca de quinze minutos de roteiro, testemunhando com sua câmera o amadurecimento de Mason Jr. (o encantador Ellar Coltrane) e daqueles que o rodeiam, especialmente a mãe, Olivia (Patricia Arquette, favorita ao Oscar de coadjuvante feminina), o pai, Mason (Ethan Hawke, amigo do diretor, indicado ao Oscar de ator coadjuvante e responsável por dar andamento ao projeto caso o cineasta morresse durante o processo de filmagens), e a irmã, Samantha (Lorelei Linklater, filha do diretor que quase abandonou o barco no meio do projeto). A câmera indiscreta do cineasta não busca os segredos de seu protagonista, nem parte atrás de alguma revelação indiscreta ou bombástica: interessa a ela os momentos mais corriqueiros, as conversas mais simples, os sentimentos mais puros. Por isso, o público se vê acompanhando festas de aniversário, jogos de boliche, comemorações de formaturas, quase como se fosse membro da família Mason. O rapaz não tem tendências psicóticas, nem esconde alguma tara inconfessável: é um rapaz banal, quase desinteressante. E é precisamente nessa aparente falta de interesse que reside a genialidade do filme.

Houve gente que reclamou da falta de roteiro e de sua lembrança entre os indicados à melhor edição ao Oscar deste ano. É de se perguntar a concepção de roteiro que essas pessoas tem, uma vez que Linklater faz, diante dos olhos dos espectadores, o milagre de transformar água em vinho, ou seja, tornar atraente, emocionante e transcendente tudo aquilo pelo qual todos passam sem dar maior importância. Tornar fascinante um diálogo sobre o cotidiano não é tarefa das mais fáceis, assim com também não o é condensar mais de uma década de vida em pouco mais de 160 minutos, e Richard faz tudo isso com uma sensibilidade à flor da pele, que transborda em cada quadro. É brilhante a forma como ele conduz sua narrativa sem supervalorizar nenhum momento, como se cada dia, por mais insignificante que pareça, fosse imprescindível à sua trama. E é extraordinário como ele consegue fazer com que tudo pareça tão verdadeiro também com seus atores. O público acompanha, fascinado, o processo de amadurecimento não só de Mason mas também de seus pais, duas pessoas complexas e multidimensionais o bastante para justificar a presença de Hawke e Arquette entre os candidatos à estatueta de 2015. Arquette, principalmente - que se viu impossibilitada de fazer qualquer cirurgia plástica durante os anos de filmagem para dar mais veracidade à personagem - brilha como nunca na carreira, na pele de uma mulher de extrema fragilidade emocional que contrasta com sua fervorosa fé no amor e na felicidade conjugal.

"Boyhood" tem tudo para sair vencedor na cerimônia do próximo dia 22 de fevereiro. Como cinema, é um exemplo de que orçamentos monstruosos não são necessários quando se tem amor e fé em um projeto. Como candidato, tem o aval dos eleitores do Golden Globe, do BAFTA (o Oscar britânico) e de algumas das mais importantes associações de críticos americanos (Boston e Chicago, por exemplo). Mas é como retrato da vida que ele mais se destaca. Se é um prazer acompanhar a vida de Mason, é porque Richard Linklater conseguiu o que parecia impossível: traduzir em imagens a vida, com seus altos e baixos, seus sorrisos e lágrimas, com seus dias de sol e noites de tempestade. Há quem não entenda o valor dessa simplicidade e prefira uma profusão de efeitos visuais e personagens irreais. Eles não sabem o que estão perdendo.

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O GRANDE HOTEL BUDAPESTE

Posted by Clenio on 21:54 in
Dentre os filmes pouco convencionais selecionados pela Academia de Hollywood para concorrer ao principal Oscar deste ano - "Birdman" e "Boyhood", por exemplo - nenhum é tão radicalmente a cara de seu autor quanto "O Grande Hotel Budapeste", escrito, dirigido e produzido por Wes Anderson, um dos cineastas menos afeitos a concessões comerciais que o cinema norte-americano gerou nos últimos quinze anos, desde que lançou o elogiado - e ignorado pelo público - "Três é demais", em 1998. Dono de um estilo facilmente reconhecível que equilibra com rara inteligência personagens excêntricos, histórias inusitadas e um visual milimetricamente planejado, Anderson faz parte de um time de poucos realizadores que tem uma marca própria dentro do cinema, como Tim Burton, Woody Allen e Pedro Almodovar. No entanto, ainda faltava a ele uma espécie de reconhecimento oficial por parte da indústria, que lhe desse o passaporte definitivo para a elite dos cineastas. Com as surpreendentes nove indicações conquistadas por seu novo filme, tal passaporte já está carimbado, independente de sua vitória - quase certa em algumas categorias como direção de arte e até roteiro original (já que foi o vencedor do sindicato) - ou derrota - bastante provável no páreo de melhor filme e direção. Só o fato de lutar de igual pra igual com produções bem menos criativas (e por conseguinte mais facilmente digeríveis pelos tradicionais e vestutos eleitores da Academia), "O Grande Hotel Budapeste" já pode ser considerado um campeão.

A trama - contada através de uma história dentro de uma história, em uma opção narrativa arriscada mas extremamente bem-sucedida - é aparentemente simples, mas repleta de bifurcações inusitadas e personagens surreais: quem começa a contá-la é um escritor consagrado (vivido por Tom Wilkinson na maturidade e Jude Law na juventude), que transmite ao público a história do misterioso Mr. Moustafa (F. Murray Abraham), dono do decadente Hotel Budapeste, localizado em um país fictício da Europa que teve seu auge no período entre-guerras. Solitário e discreto, Moustafa relembra, através de flashbacks, as reviravoltas que fizeram com que a imensa propriedade fosse parar em seu nome. Tais reviravoltas tem início quando ele, ainda jovem (e interpretado por Tony Revolori) consegue emprego como empregado do hotel, sob o comando do rígido e dedicado Gustave H. (Ralph Fiennes), que, além de ser o melhor concierge da região, não hesita em agradar as hóspedes de mais idade com noites regadas a champagne e sexo. Quando uma dessas visitantes frequentes, a milionária Céline Villeneuve Desgoffe und Taxis (Tilda Swinton irreconhecível sob pesada maquiagem), morre aos 84 anos em sua mansão, ele resolve prestar suas últimas homenagens, atendendo a seu funeral. Para sua surpresa, porém, ele fica sabendo - junto com a ambiciosa família da falecida - que herdou um quadro de valor milionário, o que acaba lhe colocando em sérios apuros com a polícia: recusando-se a aceitar que a mãe tenha deixado tão valioso bem para um mero serviçal, o psicótico Dimitri (Adrien Brody) o acusa de assassinato e parte em sua captura, ao lado de seu violento capanga Jopling (Willem Dafoe). Quando eclode a II Guerra, cabe a Gustave provar sua inocência - contando, para isso, com o apoio de um clube secreto de concierges espalhados pelo mundo.

Dotado de um humor sofisticado que provoca mais sorrisos do que gargalhadas e de uma trama tão cheia de informações visuais que uma segunda sessão é mandatória, "O Grande Hotel Budapeste" é, tranquilamente, o melhor filme de Wes Anderson, refinando as características narrativas de "Os excêntricos Tenenbauns" e estilísticas de "Moonrise kingdom" e unindo-as em um espetáculo de qualidade estética ímpar. Único dos candidatos ao Oscar de fotografia a ser filmado em película - um feito digno de nota, especialmente quando se percebe a qualidade irretocável do meticuloso trabalho de Robert Yeoman - a obra de Anderson também é um triunfo de desenho de produção, tão impressionante com seus cenários grandiosos quanto a segurança do cineasta em equilibrar narrativas múltiplas sem perder o fio da meada ou confundir o espectador. Contando com um elenco acima de qualquer crítica - com destaque para Ralph Fiennes em raro registro cômico e Edward Norton em sua segunda parceria com o diretor, além da revelação Tony Revolori - o filme ainda se beneficia da inspirada trilha sonora (mais uma) de Alexandre Desplat, que comenta a ação como se fosse um personagem a mais e pode dar a ele uma merecida estatueta dourada no próximo domingo. Ela é mais uma peça essencial em um dos mais empolgantes produtos cinematográficos dos últimos anos, um filme capaz de encantar qualquer fã da sétima arte e a prova cabal do talento de seu criador, até então escondido em pérolas de cinemateca - vulgo filmes amados por uma parcela de espectadores que não tem medo do diferente.

"O Grande Hotel Budapeste" surpreendeu ao tirar o Golden Globe de Melhor Comédia/Musical das mãos de "Birdman", em janeiro. Não seria injusto - ainda que seja pouco provável - se a Academia também se rendesse à sua genial excentricidade.


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BIRDMAN ou (A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA)

Posted by Clenio on 19:49 in
Quem está acostumado a ver o nome de Alejandro Gonzalez Iñarrítu nos créditos de filmes densos e praticamente desprovidos de qualquer tipo de senso de humor como "Amores brutos" (00), "21 gramas" (03), "Babel" (06) e "Biutiful" (10) provavelmente irá levar um susto ao deparar-se com seu novo trabalho, "Birdman ou (A inesperada virtude da ignorância)", que está firme e forte na disputa pelo Oscar de melhor filme de 2014. Deixando de lado o pessimismo realista que permeava seus três primeiros filmes - e sua parceria com o roteirista Guillermo Arriaga - o cineasta mexicano realizou seu trabalho mais poético, recheado de metáforas brilhantes sobre a arte, a vida e as relações interpessoais e dotado de um tom onírico e sarcástico que contrasta com o habitual realismo de sua cinematografia anterior. Amparado ainda em uma atuação arrebatadora do até então canastrão Michael Keaton - a maior de suas ferramentas de metalinguagem - o filme de Iñarrítu discute, sem parecer pedante ou hermético, o culto vazio às celebridades, a efemeridade da fama, o sensacionalismo e a irresponsabilidade da mídia (Internet incluída) ao contar a aparente simples história de um decadente ator popular de cinema tentando provar-se um intérprete sério ao estrelar um peça de teatro na Broadway. Tecnicamente impecável e sombriamente engraçado, "Birdman" é, acima de tudo, um filme sobre a paixão pelo teatro, pela busca incessante da transcendência através da arte.

Riggan Thompson (Michael Keaton) é o que pode-se chamar de um ex-astro: protagonista de uma série de três filmes onde interpretou um super-herói chamado Birdman, ele viu sua carreira entrar em decadência vertiginosa depois de ter recusado um quarto capítulo, há mais de vinte anos. Considerando-se um fracassado quase irrecuperável, ele resolve dar uma última cartada para retomar sua autoestima e conquistar o respeito da crítica e do público: escrever, dirigir, produzir e estrelar uma peça de teatro na Broadway. Sua insegurança, porém, ameaça a estreia do espetáculo, assim como a gama de personagens surreais que o rodeiam, como Mike Shiner (Edward Norton, sensacional como sempre), ator de métodos tradicionais que se considera superior à toda a equipe por ter construído sua carreira nos palcos e não nas telas, e a filha de Riggan, Sam (Emma Stone), que acaba de sair de uma clínica de reabilitação. Além dos problemas normais de uma produção teatral, o ídolo de uma geração de cinéfilos também precisa enfrentar a má-vontade pré-concebida da crítica e lidar com a voz do próprio Birdman - que surge como uma espécie de conselheiro invisível que o empurra adiante em suas ambições.

"Birdman" é uma festa para os olhos, os ouvidos e o cérebro da plateia. A fotografia de Emmanuel Lubezki integra-se à narrativa de forma tão orgânica que parece quase invisível diante dos ilusórios planos-sequência criados por Iñarrítu, que conduzem a plateia pelos corredores estreitos do teatro onde se passa a maior parte da ação apenas para culminar em um clímax de extrema poesia e força dramática. O roteiro - equilibrado com maestria entre o humor cáustico e o drama existencial de uma geração exposta ao nada admirável mundo novo da tecnologia que torna tudo vorazmente fugaz - soa como um bálsamo para um público acostumado a diálogos pobres e ginasiais. E as questões que discute - a prostituição da arte, o amor pelo teatro, a dicotomia prestígio/popularidade, a falta de sentido na fama pela fama - nunca foram tão prementes quanto hoje em dia, quando talento vem sendo mercadoria dispensável na fogueira das vaidades do sucesso instantâneo. Somados a tudo isso há ainda o elenco em dias de extrema inspiração: Michael Keaton, no papel de sua vida (literalmente), tem tudo para ganhar um Oscar de melhor ator, caso a Academia não se renda ao óbvio e homenageie Eddie Redmayne por sua caracterização de Stephen Hawking. E Edward Norton - duas vezes indicado anteriormente e duas vezes descaradamente roubado - tem o azar de encontrar JK Simmons pela frente: uma vitória sua seria surpreendente, mas jamais injusta.

Talvez uma parte do público - menos disposta a experiências que fujam do banal - rejeitem "Birdman" por sua estética, sua narrativa, seu tema. Mas provavelmente não seja essa parte da audiência que Alejandro Gonzalez Iñarrítu queira atingir com sua magistral fábula. Encantar-se com a inteligência e a sutileza de seu trabalho é privilégio de quem consegue sonhar acordado apesar dos pesares. "Birdman" é para quem tem a arte na alma.

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OLHOS GRANDES

Posted by Clenio on 20:59 in
De vez em quando um diretor consagrado por um determinado estilo de cinema resolve virar a mesa e lançar um trabalho que destoe de sua carreira, até mesmo para mostrar que seu talento não se resume a um samba de uma nota só. Foi assim que David Lynch lançou seu belo "História real" (99), que fugia de suas alucinações oníricas, Martin Scorsese surpreendeu com o zen "Kundun" (97), que abandonava os gângsters para retratar a vida de um Dalai Lama e até James Cameron, que substituiu as explosões de seus filmes de ficção científica para contar uma trágica história de amor em "Titanic" (97). Talvez tenha sido essa a razão que levou Tim Burton a assinar "Olhos grandes", uma delicada história real que muito pouco lembra a obra do homem que legou ao cinema obras no mínimo excêntricas como "Os fantasmas se divertem" (88), "Edward Mãos de Tesoura" (90) e as versões psicodélicas de "A fantástica fábrica de chocolate" (05) e "Alice no país das maravilhas" (10). Porém, para sorte do público que há algum tempo espera um filme realmente bom de Burton - já que "Sombras do mal", seu trabalho mais recente em live action, lançado em 2012, está longe de ser um de seus melhores - sua visão da trajetória da artista plástica Margaret Keane revela que, por debaixo da excentricidade do diretor existe um cineasta também preocupado em contar uma história de forma clássica, sem apelar exageradamente à forma.

A bem da verdade não é a primeira vez que Burton trabalha em registro delicado. Foi com essa mesma leveza e carinho que ele tratou "Ed Wood" (95), a biografia do pior diretor da história do cinema, e "Peixe grande" (03), que lançava mão da fantasia de maneira sutil e poética - sintomaticamente os dois melhores filmes de sua carreira. Dessa vez, no entanto, ele vai ainda mais longe no desapego a suas características mais fortes, evitando que qualquer traço maior de sua personalidade transpareça na tela. É certo que algumas sequências ainda lembram o Burton de sempre, principalmente com o uso inteligente das cores e da composição visual, mas é a forma contida de narração que mais surpreende no resultado final. "Olhos grandes" é um filme discreto e simples como as telas de sua protagonista, mas, assim como elas, jamais desprovido de alma.

Mais do que um filme sobre os bastidores do mundo das artes plásticas e mais sobre a turbulenta relação entre a pintora Margaret Keane e seu segundo marido, o também pintor Walter Keane - que lhe deu um sobrenome e em troca explorou seu talento por anos a fio, assumindo a autoria de seus quadros mais famosos e valorizados, que sempre retratavam crianças com olhos maiores do que o normal - "Olhos grandes" tem como seu maior mérito a interpretação superlativa de Amy Adams, uma grande atriz em um momento especial da carreira. Preenchendo os silêncios de Margaret com uma vasta gama de emoções transmitidas apenas com o olhar, Adams justifica plenamente o Golden Globe de melhor atriz em comédia ou musical que arrebatou este ano - e deixa ainda mais inexplicável sua ausência na lista das indicadas ao Oscar. Se Christoph Waltz vem se repetindo perigosamente em suas interpretações - sempre a um passo do overacting mesmo quando não é apropriado - Adams dribla a quase apatia da personagem injetando nela uma verdade impossível de ignorar.

Mesmo que o roteiro burocrático - escrito pelos mesmos Larry Alexander e Scott Karaszewski das cinebiografias "O povo contra Larry Flynt" (96), "O mundo de Andy" (99) e o próprio "Ed Wood" - impeça "Olhos grandes" de ser um grande filme, é impossível negar que Tim Burton deu um passo à frente em sua carreira, explorando novas possibilidades e fugindo da armadilha que ele mesmo criou ao atrelar-se a um estilo de cinema que a cada trabalho parecia mais e mais restrito a seu universo particular. Sua coragem em sair da zona de conforto é louvável. E felizmente para os fãs de bom cinema, seu novo filme também o é.


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MANSON

Posted by Clenio on 00:38 in
Não, não é preciso ter qualquer interesse por mentes perigosas ou relatos psicóticos para se ler "Manson", a biografia escrita por Jeff Guinn que conta a vida de uma das mais impactantes personalidades americanas do século XX. Charles Manson não foi um cientista que descobriu a cura de alguma doença, tampouco inventou alguma traquitana que tenha facilitado a vida contemporânea. Não ajudou os necessitados, muito menos encantou o mundo com sua arte. A fama de Manson - duradoura e surpreendentemente sólida - vem do mal. Vem daqueles recônditos da alma humana de que todos tem medo. Vem da fascinação que todos nós, queiramos ou não, temos pela violência, por aquilo que nos separa dos seres irracionais. Em pleno 1969 - quando os EUA estavam em meio à guerra do Vietnã e os conflitos raciais que explodiam em cada canto do país - um homem diminuto, quase insignificante, escancarou as feridas da América com uma série de crimes brutais e sem sentido (ao menos para os reles cidadãos normais) e conseguiu, com um dos julgamentos mais célebres da história, a fama que jamais atingiu com os dotes musicais que fantasiava ter. Fruto de um país problemático? Resultado de uma infância desregrada e solitária? Ou simplesmente um homem comum com um extraordinário senso de oportunidade cuja escalada de crimes apenas demonstra um caráter desvirtuado? São essas as respostas que Guinn dá ao leitor de seu magnífico livro, lançado no Brasil pela Editora Darkside.
 
Para quem não sabe quem é Charles Manson, pode-se dizer, a grosso modo, que ele foi o responsável por um dos crimes mais chocantes que a cidade de Los Angeles presenciou em sua história: em agosto de 1969, a atriz Sharon Tate, então casada com o cineasta Roman Polanski e grávida de oito meses, foi uma das vítimas de um massacre que também causou a morte de três amigos que estavam hospedados em sua casa - alugada de Terry Melcher, produtor musical e filho da atriz Doris Day e localizada em um bairro nobre e isolado da cidade - e de um amigo do jovem caseiro. Além da extrema violência do crime, outras características atiçaram a imaginação do público - que acompanhou a investigação como se estivesse assistindo a um empolgante porém apavorante seriado de TV - como o fato de palavras terem sido escritas com o sangue nas paredes e a descoberta de uma nova cena do crime cometido na noite seguinte, dessa vez vitimando um casal de classe média. Tido apenas como mais um hippie excêntrico em uma época repleta deles, Manson era o líder de um grupo que ele mesmo batizara como "A Família" - jovens desajustados e facilmente manipuláveis através de uma dieta generosa em drogas e sexo promíscuo - e tinha como maior objetivo na vida ganhar dinheiro fácil e fama através da música. Compositor medíocre, ele não conseguiu impressionar àqueles da indústria fonográfica - como o próprio Melcher e Dennis Wilson, da banda Beach Boys - e, dotado de uma mente tão distorcida quanto maquiavélica, forjou sua entrada na história às custas de sangue alheio.

Dominando seu grupo de fieis e fanáticos seguidores, Manson fez com que todos acreditassem cegamente em um absurdo apocalipse - ao qual deu o nome de "helter skelter" como a música dos Beatles lançada no famigerado "Álbum branco" - que seria deflagrado somente quando os negros se revoltassem com o status quo a ponto de exterminar os brancos para assumir o poder. Manipulando a todos com orgias de sexo e ácido, ele planejou com cuidado os assassinatos da mesma forma como organizava excursões a latas de lixo em busca de comida e tentativas de extorsão junto a todos aqueles que tinham o azar de dar-lhe um mínimo de atenção. Praticamente um gênio do mal, Manson utilizava tanto os Beatles quanto a Bíblia para enriquecer sua retórica psicótica e conduzir sua "família" a realizar, em seu nome, todos os atos vis, egoístas e criminosos que lhe deram o status, por vias tortuosas, de celebridade.

Ao contrário do sensacional "Helter skelter", escrito por Vincent Bugliosi, promotor do caso Manson - e infelizmente esgotado há anos no mercado editorial brasileiro, que serviu de consulta à publicação da Darkside e é um complemento saboroso a ela - a biografia de Jeff Guinn não se dedica apenas ao julgamento em si, que ocupa os dois últimos capítulos do livro: o jornalista investigativo que já escreveu uma obra também sobre Bonnie & Clyde entrevistou familiares de Charlie, desvendando sua infância e adolescência com riqueza de detalhes, além de examinar sua trajetória rumo à marginalidade sob a ótica de seu tempo, um período turbulento que, de certa forma, permitiu a ele que construísse sua mórbida mitologia. Ler o livro de Guinn é, mais do que tentar entender Charles Manson, mergulhar em uma época que caminhava no limite tênue da ideologia "paz e amor" dos hippies e da beligerância oca da guerra do Vietnã, entre as conquistas feministas e as lutas pelos direitos civis dos negros, entre Woodstock e Watergate, entre o glamour de Hollywood e a decadência nada discreta de suas sarjetas. Guinn abre a caixa de Pandora de um país em conflito com sua própria identidade e dela tira uma de suas maiores aberrações, um homem tão misteriosamente hipnotizante que, mesmo hoje, 45 anos depois de ter surgido no horizonte da crônica policial, ainda é capaz de despertar interesse.

Ilustrado ainda com fotos raras, que mostram Charlie ainda criança e adolescente - além de outras imagens de suas seguidoras e da vítima Sharon Tate - "Manson" é um livro por vezes brutal, mas sempre instigante. Uma leitura envolvente e imperdível.

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CAMINHOS DA FLORESTA

Posted by Clenio on 23:51 in
A ideia até que é boa e seu sucesso na Broadway desde 1987 não nega: um musical que revisita os contos de fadas dos irmãos Grimm, virando do avesso seus personagens e mostrando deles um lado nunca dantes visto, com a música do veterano Stephen Sondheim comentando a ação. Escalar a sempre fabulosa Meryl Streep como a bruxa má cuja maldição lançada em um casal ansioso por um filho também é uma tacada de mestre. E ter Rob Marshall - que adaptou de maneira irretocável o musical "Chicago" para o cinema, revigorando o gênero e levando-o a conquistar o Oscar de melhor filme de 2002 - na direção também apontava para um êxito certo. Por que então a transposição de "Caminhos da floresta" para as telas desapontou tanta gente, a ponto de passar quase em brancas nuvens pelo Oscar apesar da bilheteria polpuda?

Não é preciso ser especialista em cinema nem tampouco em musicais da Broadway para saber que nem sempre o que funciona em um palco é transferido com eficácia para o cinema. Marshall se deu bem com "Chicago", mas Joel Schumacher naufragou feio com seu pretensioso "O fantasma da ópera", assim como o aplaudidíssimo "Os miseráveis" bombou feio na sua adaptação, apesar de ter conseguido enganar a frequentemente falível Academia e conquistado indicação à estatueta de melhor filme. "Caminhos da floresta" não chega ao extremo de ser tão intragável quanto o filme de Tom Hooper - tem momentos encantadores e um elenco competente o bastante para impedir que tanto aconteça - mas fica bem aquém do que poderia ser, principalmente em sua segunda metade, quando a trama tem uma virada tão improvável e desnecessária quanto a escalação de Johnny Depp para viver o lobo mau da Chapeuzinho Vermelho, em uma participação que não soma mais do que cinco minutos em cena.

Como é comum nas produções de Rob Marshall - ele também tem o premiado "Memórias de uma gueixa" no currículo - o desenho de produção de "Caminhos da floresta" é excepcional, assim como a fotografia sombria que contrasta inteligentemente com a ideia pré-concebida de que histórias infantis devem ser coloridas e etéreas. Aliás, é elogiável a decisão da Disney em manter o tom adulto da narrativa teatral em detrimento de uma amenizada que poderia tirar a personalidade do espetáculo de James Lapine: o filme não tem medo de matar personagens importantes ou desconstruir com uma boa dose de ironia as fantasias românticas criadas ao redor dos príncipes encantados, assim como também não faz da bruxa de Meryl Streep uma vilã maniqueísta e unidimensional, dando a ela as possibilidades necessárias para mais um show da atriz: sua construção da personagem lhe rendeu a vigésima indicação ao Oscar - única lembrança do filme pela Academia além de direção de arte e figurino, seus maiores méritos - e, mais do que por hábito, sua nomeação vem por justiça, já que é ela quem domina as melhores sequências da obra.

Mas, mais do que os problemas ao alterar a linguagem teatral para a das telas, mais do que a queda brusca de ritmo e interesse na segunda metade e mais do que a pressa em contar sua história, o pior pecado de "Caminhos da floresta" está justamente onde deveria estar seu maior trunfo: na música. Por mais que Stephen Sondheim seja um veterano mestre da Broadway - e já tenha um Oscar em casa pela bela "Sooner or later", do filme "Dick Tracy" - suas canções para a peça de Lapine talvez funcionem no palco, mas nas telas soam repetitivas e monótonas. Não existe uma melodia que fique na cabeça do espectador, que o faça cantarolar após a sessão - o que não deixa de ser um tanto frustrante quando se trata de um musical tão esperado, com um elenco tão especial e de um diretor tão talentoso. Ainda assim, sem maiores expectativas, pode divertir aos menos exigentes.

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A TEORIA DE TUDO

Posted by Clenio on 21:45 in
Para um filme conquistar admiradores dentre os eleitores da Academia e consequentemente receber estimadas indicações ao Oscar - e junto com elas uma boa dose de prestígio, dinheiro e notoriedade - existe uma receita quase infalível que "A teoria de tudo", dirigido por James Marsh - autor do documentário "O equilibrista", premiado com uma estatueta dourada em 2009 - segue à risca. Existe o protagonista vítima de uma doença degenerativa. Existe sua força de vontade que o faz superar suas limitações. Existe uma história de amor e lealdade. Existe um cuidado com a produção, impecável nos mínimos detalhes. Existe o ator fisicamente irreconhecível em um trabalho consagrador. E existe o golpe de misericórdia: o fato de ser uma história real. Não é à toa que o filme - que conta a história do físico Stephen Hawking - chega à cerimônia do Oscar deste ano indicado em 5 categorias, incluindo melhor filme, ator, atriz e roteiro adaptado: ele tem todos os ingredientes corretos para o sucesso. No entanto, falta a ele o toque do bom cozinheiro, o segredo que transforma uma refeição trivial em um banquete. Em "A teoria de tudo" sobra fórmula, mas falta um pouco de coração.

Não que o filme, adaptado do livro de Jane Hawking - que foi casada com Stephen e lhe deu três filhos - seja ruim, muito pelo contrário. O capricho de sua realização, desde a fotografia inspirada do francês Benoit Delhomme até a premiada trilha sonora de Jóhann Jóhansson (que levou o Golden Globe deste ano para casa) é evidente até ao mais distraído dos espectadores, e a interpretação de Eddie Redmayne como Hawking é daquelas capazes de mudar a carreira de um ator - ele também foi agraciado com um Golden Globe e caminha para ganhar o Oscar por seu intenso e fascinante desempenho. Mas tanto o roteiro de Anthony McCarten quanto a direção de Marsh carecem de ousadia. Sua narrativa é acadêmica em excesso, quase simplória, não permitindo ao público o envolvimento que sua história - forte e emocionante por si só - poderia oferecer. Até mesmo a relação entre Hawking e Jane soa um tanto superficial do modo como a história é conduzida: mesmo que fique claro o amor entre eles, não existe aquele elo potente que, por exemplo, Russell Crowe e Jennifer Connelly transmitiam em "Uma mente brilhante", de Ron Howard - um belo exemplo de filme que, mesmo seguindo uma engrenagem bem perceptível, conseguiu extrapolar seus limites e surpreender a plateia com um roteiro criativo e uma direção intensa.

Acompanhado a vida de Stephen Hawking desde o momento em que conheceu Jane (Felicity Jones em uma atuação eficaz mas que não justifica uma indicação ao Oscar) até sua condecoração pela Rainha Elizabeth, oferecida graças a seu extraordinário trabalho como físico e suas teorias que o levaram a ser considerado o novo Einstein. No meio do caminho, o roteiro trata de explorar a degeneração progressiva do cientista, que vai perdendo a locomoção, o equilíbrio e, depois de um ataque quase fatal que o obrigou a fazer uma traqueotomia, a fala e a capacidade de engolir. Com extrema resiliência, porém, ele mantém-se vivo e lutando, trabalhando em suas teses e contando com o apoio da esposa mesmo quando ela sente-se tentada a viver a vida que deixou de lado para manter-se a seu lado. Nesse momento, quando Jane assume o posto de protagonista é que Jones demonstra que, apesar de convincente, não tem a força necessária para deslumbrar o público. E essa mudança de foco, ao invés de ajudar ao filme, apenas diminui seu impacto final.

O maior problema de "A teoria de tudo" - um filme correto, bonito, até comovente em certas passagens - é que ele não sacode a plateia. A plateia talvez nem mesmo queira isso, uma vez que nem todo mundo vai ao cinema querendo assistir a um filme revolucionário por noite, mas falta a ele um tempero a mais, um toque a mais de personalidade. Eddie Redmayne merece todos os aplausos por seu trabalho, e idem Stephen Hawking, um dos mais brilhantes homens de nosso tempo. Mas ambos mereciam um filme mais impactante.

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