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EU, MAMÃE E OS MENINOS

Posted by Clenio on 23:45 in
A busca pela identidade sexual na infância ainda é um assunto relativamente pouco explorado pelo cinema - apesar de títulos interessantes como o belga "Minha vida em cor-de-rosa" e o recente "Tomboy" - talvez por ser um tema delicado e um tanto polêmico. Por isso não deixa de ser louvável que um filme como "Eu, mamãe e os meninos" tenha saído da última edição do César - o Oscar francês - com cinco estatuetas, incluindo os cobiçados prêmios de melhor roteiro adaptado, ator e filme. Adaptado por Guillaume Galliene de sua própria peça teatral - por sua vez inspirada na excêntrica relação que tinha com a mãe - a comédia dramática pode até lembrar o nacional "Minha mãe é uma peça", mas tem ambições muito maiores do que o filme estrelado por Paulo Gustavo. Enquanto o brasileiro campeão de bilheteria tinha como objetivo básico arrancar gargalhadas da audiência, Galliene (egresso da afamada Comèdie Française) mira mais alto: ao analisar as dúvidas sexuais de seu protagonista, ele faz rir sem jamais deixar de criticar, nas entrelinhas, a necessidade quase patológica do ser humano em impor rótulos e limitações. Se por um lado atinge seu objetivo - com um final que tanto pode surpreender quanto decepcionar - por outro tropeça, em alguns momentos, em um humor um tanto questionável.

Utilizando-se de uma estrutura pouco usual - que mistura organicamente a linguagem teatral com a cinematográfica sem maior prejuízo de nenhuma delas - "Eu, mamãe e os meninos" acompanha a trajetória do próprio Guillaume, que desde a infãncia sentia-se diferente dos dois irmãos: pouco afeito a esportes e ligado às raias da obsessão à sua mãe, o garoto passava os dias trancado em seu quarto, vestindo-se da imperatriz austríaca Sissi e tentando imitar os trejeitos da mãe e das tias. Seus modos - que logicamente não agradam ao pai e despertam o riso do resto da família - acabam o levando a experiências das mais variadas, sempre na tentativa de dar nome à sua diferença. Tais experiências - tão díspares como um colégio interno, terapeutas e uma boate gay - acabam servindo para que Guillaume perceba que encontrar a si mesmo independe dos outros e que somente ele pode descobrir quem ele realmente é.

A maior das qualidades de "Eu, mamãe e os meninos" - à parte a coragem do diretor/roteirista/ator em fugir dos padrões convencionais de contar uma história que poderia facilmente tornar-se mais uma comédia francesa com destino a cult - é a interpretação do próprio Guillaume Galliene, merecidamente premiado por sua atuação. Vivendo ele mesmo em diversas fases de sua vida - desde a infância até a fase adulta - e interpretando também sua mãe (mais uma semelhança com o trabalho de Paulo Gustavo), ele conduz o público a uma viagem frequentemente constrangedora (no bom sentido) pelas dúvidas de uma criança/adolescente que, consciente de suas diferenças, procura encaixar-se em um mundo normalmente avesso a elas. Tendo coragem em finalizar sua odisseia de forma inesperada - que é um tapa na cara dos adeptos do sectarismo mas de certa forma nega quase tudo que foi mostrado antes - Galliene oferece ao espectador momentos de um humor sutil, capaz de agradar mesmo aos mais exigentes. E só o fato de despertar discussões com seu desfecho já é digno de nota.

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REFÉM DA PAIXÃO

Posted by Clenio on 23:44 in
Basta dar uma olhada na lista de filmes com a assinatura de Jason Reitman para perceber que o jovem (37 anos) cineasta não é exatamente um romântico ou um entusiasta da raça humana, voltando sua câmera sempre para personagens munidos de alta dose de cinismo e/ou desprezo pelo próximo. Assim era o lobista da indústria tabagista vivido por Aaron Eckhart em "Obrigado por fumar" (2005), a adolescente pragmática que se descobria grávida em "Juno" (2007), o solitário executivo que George Clooney interpretou em "Amor sem escalas" (2009) e a escritora bem-sucedida que resolvia reconquistar um antigo amor em "Jovens adultos" (2011). Sendo assim, não deixa de ser uma surpresa que seja seu nome que esteja por trás de "Refém da paixão", uma história de amor na mais tradicional acepção do termo - e seu carinho pelos personagens não deixa dúvidas sobre seu talento em tornar interessantes pessoas aparentemente normais.

Baseado em um livro de Joyce Maynard, "Refém da paixão" - mais um da série "títulos nacionais horrendos para filmes bons" - não apresenta grandes novidades a seu gênero, preferindo manter uma linha narrativa simples, opção que, ao mesmo tempo em que perigosamente se desvia de uma maior criatividade, o aproxima mais facilmente do espectador que procura apenas uma história bem contada. E, a despeito da falta de novidades da trama e da direção correta mas nunca brilhante de Reitman, o filme é exatamente isso: uma história de amor envolvente, delicada e que tem seus maiores trunfos atendendo pelos nomes de Josh Brolin e Kate Winslet.

Winslet, em um papel que lhe rendeu uma indicação ao último Golden Globe, interpreta Adele, uma mulher incapaz de reagir à separação do marido - que a deixou por outra - e que vive quase reclusa, tendo por companhia apenas o filho pré-adolescente, Henry (o ótimo Gattlin Griffith). Sua inconstância preocupa o menino, que, por sua vez, tenta levar a vida da forma mais normal possível. A pacata rotina de mãe e filho, porém, é abalada às vésperas do feriado do Dia do Trabalho, quando uma aparentemente inocente carona os põe diante de Frank (Brolin, em mais um trabalho digno de nota), um homem condenado por homicídio que, ferido em sua fuga do presídio, os mantém prisioneiros dentro de casa. O que poderia ser uma experiência traumática, porém, é amenizada pela relação que se estabelece entre algoz e reféns: prestativo e gentil, Frank aos poucos conquista a confiança de Henry - que vê nele a figura paterna que frequentemente lhe falta - e o amor de Adele, que se apaixona por ele e passa a considerar uma mudança radical em sua vida.

Ainda que vez ou outra lembre "Um mundo perfeito" - subestimado filme de Clint Eastwood estrelado por Kevin Costner nos anos 90 - "Refém da paixão" tem identidade própria. É inegável que muitas vezes escorregue em alguns clichês do gênero, mas suas qualidades de certa forma o absolvem de um julgamento mais duro. A química entre Winslet e Brolin - ator que os mais nostálgicos sempre verão como o irmão mais velho do oitentista "Os goonies", mas que vem construindo uma brilhante carreira de 2007 pra cá - é palpável mesmo quando sua relação evolui de forma um tanto rápida demais e Griffith constrói um Henry na medida certa entre ingenuidade, coragem e sensibilidade - fato que nem a presença do sempre inexpressivo Tobey Maguire em sua versão adulta consegue atrapalhar.

"Refém da paixão" é quase um corpo estranho na filmografia de Jason Reitman, mas é, ao mesmo tempo, uma bem-vinda tentativa de aventurar-se em um gênero que precisa desesperadamente de um sopro de talento e sensibilidade. É um belo drama romântico, realizado com inteligência e um tom nostálgico que lhe serve como uma luva. Ainda não foi dessa vez que Reitman decepcionou.

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FIM

Posted by Clenio on 21:46 in
Que Fernanda Torres é uma atriz superlativa o mundo todo sabe desde que ela, aos meros 20 aninhos, abocanhou a Palma de Ouro de melhor atriz no Festival de Cannes, pelo filme "Eu sei que vou te amar", de Arnaldo Jabor. O que talvez pouca gente soubesse é que a eterna Vani do seriado "Os Normais" tem também o talento das letras. Não só escreveu o roteiro do filme "Redentor" - dirigido por seu irmão Cláudio - como é colaboradora da Revista Piauí e colunista da Folha de São Paulo e da Veja Rio. Sua estreia como romancista, portanto, não é apenas questão de ego, e sim uma consequência natural. "Fim", publicado pela Companhia das Letras - uma editora que não publica qualquer coisa, como sabe quem é leitor voraz - é um dos mais apaixonantes livros nacionais dos últimos anos, escrito com a inteligência, o senso de humor e uma bem dosada sensação de melancolia que raramente se consegue enxergar em um mercado editorial saturado de obras vazias e escritas com o olho na máquina registradora.


Típico livro que deixa no leitor a vontade quase irresistível de recomeçar a leitura assim que acaba a última página, "Fim" acompanha - como o título sugere - os momentos finais de um grupo de cinco amigos de sessenta e muitos anos que, depois de vidas regadas a muitas farras e aventuras amorosas das mais diversas estirpes, se veem às voltas com a visita nada desejada da senhora da foice. Logicamente, dependendo de sua personalidade, cada um deles lida de maneira diferente com seu destino, mas, em comum, todos aproveitam seus últimos momentos para passar a limpo suas existências. E é aí, nessa estrutura complexa e intrincada - em que fluxos de consciência se misturam a sacadas irônicas e sarcásticas sobre a vida, o sexo e a velhice - que Fernanda mostra que não está para brincadeira. Assim como Chico Buarque fez em seu brilhante "Leite derramado", a atriz tornada escritora utiliza-se da situação extrema da morte para obrigar seus personagens a fazerem um inventário de suas culpas, desilusões e até mesmo de seus momentos de prazer absoluto - que envolvem, além deles, suas esposas, também descritas com uma generosidade de detalhes deliciosa.

Imprimindo personalidade e maturidade em cada página de seu livro, Fernanda Torres criou uma pequena obra-prima, capaz de encantar o leitor desde seu primeiro parágrafo e de lhe arrebanhar fãs em outras esferas artísticas. Não é exagero afirmar que uma grande escritora nasceu com as mortes de Ciro, Sílvio, Neto, Ribeiro e Álvaro. Que venham os próximos livros.

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ALABAMA MONROE

Posted by Clenio on 21:28 in
O bluegrass é um dos gêneros musicais característicos do sul dos EUA e se utiliza basicamente de instrumentos acústicos como violão, banjo e baixo acústico. Tendo suas raízes na música tradicional das ilhas britânicas, na música rural negra, no jazz e nos blues, ele é relativamente pouco conhecido no Brasil, mas é um das bases dramáticas de "Alabama Monroe", representante oficial da Bélgica na corrida pelo último Oscar - e que perdeu a estatueta para o italiano "A grande beleza". Baseado em uma peça teatral de Mieke Dobbels e Johan Heldenbergh (que interpreta o principal papel masculino), o filme de Felix Van Groeningen acabou se tornando o favorito popular ao prêmio graças principalmente à sua impressionante comunicação com a audiência, que, sem exceção, termina a sessão aos prantos, emocionada com um filme que equilibra com maestria uma devastadora história de amor e perda com uma trilha sonora impactante e uma discussão sempre pertinente sobre a importância da fé e da religião nas relações interpessoais - sem que para isso precise abdicar de uma estrutura dramática das mais interessantes e envolventes dos últimos anos.

Com a narrativa fora de ordem cronológica - artifício cada vez mais comum no cinema moderno, masque  quase nunca é utilizado de maneira orgânica como aqui - "Alabama Monroe" conta a história de amor improvável entre Didier (Heldenbergh), integrante de uma banda de bluegrass, ateu e romântico e Elise (a ótima e expressiva Veerle Baetens), uma tatuadora católica realista e que tem no corpo as marcas de seus antigos amores. Juntos, os dois vivem uma relação passional e feliz, que é abençoada com a chega de uma filha - a encantadora Maybelle - e ameaçada com a sombra de um câncer agressivo que balança suas crenças e certezas. Forçados a lidar com uma situação triste e inesperada, eles também precisam entender um ao outro - o que parece ser um desafio ainda mais complicado e frustrante.

Contando com um roteiro inteligente cujas engrenagens não são tão óbvias como acontece com a grande maioria dos filmes que buscam a emoção do espectador, "Alabama Monroe" não se propõe apenas a comover ou contar sua história. Por trás do drama vivido por Didier e Elise encontra-se uma profunda discussão teológica que contrapõe - sem julgamentos de valor - o ateísmo renitente do músico e a arraigada fé da tatuadora, assim como também levanta questionamentos sobre o amor, a perda e as variadas formas de lidar com a dor e a desilusão. A edição ágil - que mescla flashbacks com fast- forwards - não impede, no entanto, que alguns diálogos fortes e crus fiquem escondidos: ao contrário, é pouco provável que a audiência esqueça facilmente a brutal discussão entre os protagonistas sobre suas possíveis culpas na tragédia que se abate sobre eles ou o discurso abertamente crédulo de Didier depois de um show - e que acaba preparando o terreno para o final devastador, capaz de estraçalhar qualquer coração.

Talvez "Alabama Monroe" seja um tanto depressivo e pessimista para quem busca apenas um divertimento rápido. Mas aquele público que procura no cinema algo mais do que entretenimento certamente sairá da sala de exibição com o coração transbordando - de tristeza, de dor e principalmente de uma boa dose de realismo que só a sétima arte (com seu poder de embelezar o desespero com poesia) consegue proporcionar. É um dos grandes filmes de 2014.

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GRANDE IRMÃO

Posted by Clenio on 20:07 in
Quando o livro "Precisamos falar sobre o Kevin" foi lançado no Brasil, o furor causado pela obra de Lionel Shriver suscitou também uma questão: será que essa escritora americana era tão boa quanto demonstrava na trágica história do adolescente responsável por uma chacina em sua escola ou era tudo apenas mais um golpe de sorte. Essa dúvida foi desaparecendo aos poucos, conforme outros títulos eram lançados. Em "O mundo pós-aniversário" e "Dupla falta", ela analisava os meandros dos relacionamentos amorosos, repletos de idiossincrasias e inconstâncias. Em "Tempo é dinheiro", desferiu um duro golpe na indústria dos planos de saúde nos EUA ao narrar a odisseia de um homem para manter o tratamento médico da esposa. E em seu novo trabalho - lançado novamente pela editora Intrínseca - ela volta os olhos a um problema cada vez mais premente na sociedade americana (e por que não em todas as sociedades ocidentais): a obesidade mórbida. Sem nenhuma relação com "1984", de George Orwell ou o famigerado reality show de sucesso, "Grande irmão" comprova o talento de Shriver em criar personagens críveis em situações aparentemente banais - mas que na verdade são extremas e decisivas.

 Escrito na ressaca moral decorrente do irmão da escritora, Greg, que morreu vítima de problemas ligados à obesidade em 2009 - antes que ela tivesse a chance de cuidá-lo como a protagonista de seu livro - "Grande irmão" reitera o estilo de prosa direta e quase irônica da autora que, a julgar por sua obra, não é exatamente uma entusiasta da raça humana em geral. Mais uma vez, ela aproveita para desfiar um rosário de críticas à família, à sociedade, aos bastidores da arte e principalmente à forma equivocada com que grande parte do mundo trata a alimentação. Descrevendo de maneira realista e coerente a relação entre obesidade e depressão - e suas consequências quase sempre dramáticas - Shriver não hesita em manipular as certezas do leitor, questionando as escolhas dos personagens sem soar condescendente ou fazer julgamentos morais. Pelo contrário, Pandora, a protagonista, é dotada de todas as dúvidas que constroem uma grande personagem literária.

Empresária bem-sucedida, esposa amorosa e madrasta bem quista pelos enteados, Pandora vive em uma pequena cidade do Iowa e tem sua rotina pacífica drasticamente alterada quando recebe a visita de seu irmão mais velho. Músico de extremo talento e outrora um homem sedutor e carismático, Edison chega à casa da irmã pesando mais de 170kg, sem dinheiro, sem emprego, sem auto-estima e principalmente sem expectativas. Chocada com a nova situação do único familiar com quem mantém uma relação amorosa - o pai é um ex-astro de televisão dedicado a cultuar o passado, e a irmã caçula só dá notícias em datas festivas - Pandora arrisca o próprio casamento em uma missão quase impossível: dividir um apartamento com o irmão para ajudá-lo a recuperar a antiga forma e assim salvar sua vida.

A trajetória de Pandora na busca pelo sucesso de sua missão é narrada com precisão e um senso de humor surpreendente - e disfarçado pela amargura - e o desfecho da história é, mais uma vez, um de seus pontos altos, ao desconstruir muitas das suas afirmações. Sem cair na tentação de paternalizar seus personagens - e gostar de Edison requer muito boa-vontade, já que ele não é exatamente adorável e suas atitudes frequentemente são desagradáveis e autodestrutivas - Shriver se mostra novamente uma mestra da ficção contemporânea, utilizando temas relevantes como panos-de-fundo para histórias humanas e emocionantes.

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TUDO POR JUSTIÇA

Posted by Clenio on 18:35 in
Não se deixe iludir pelo desfile de grandes nomes dos créditos: apesar de ter Ridley Scott e Leonardo DiCaprio entre os produtores e ter no elenco gente acima de qualquer suspeita, como Christian Bale, Woody Harrelson, Forest Whitaker e Willem Dafoe, o drama policial "Tudo por justiça" - dirigido pelo mesmo Scott Cooper de "Coração louco", que deu o Oscar de melhor ator a Jeff Bridges - é um filme que muito ambiciona mas pouco consegue atingir. Não é um drama com a potência que poderia nem tampouco o filme policial que a sinopse faz pensar. E nem mesmo o talento inegável de Bale consegue apagar a sensação de tempo perdido quando a sessão acaba.

Bale - competente como sempre, apesar da fragilidade do roteiro - interpreta Russell Baze, um rapaz sério, que tem uma relação de amor e companheirismo com a namorada, Lena (Zoe Saldana), além de ser um filho dedicado e o protetor irmão do rebelde Rodney (Casey Affleck), veterano de guerra propenso a entrar em encrencas a cada esquina. Preso depois de um acidente de carro, ele retorna à sua cidade natal a tempo de encontrar Rodney envolvido em lutas clandestinas organizadas pelo violento Harlan DeGroat (Woody Harrelson), mas não consegue impedir que uma tragédia o obrigue a deixar de lado seus ideais pacíficos e éticos.

A trama é óbvia e sem maiores emoções. O desenvolvimento é lento sem necessidade. Os personagens não tem carisma o bastante para conquistar o espectador. Esses problemas ficam ainda mais ampliados quando o final anticlimático chega, deixando na plateia um sabor amargo de perda de tempo. O início promissor se esvazia a cada minuto, fazendo com que nem mesmo o talento superlativo de Christian Bale seja suficiente. Uma pena.

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A MÚSICA NUNCA PAROU

Posted by Clenio on 20:44 in
O nome do psiquiatra Oliver Sacks não é estranho aos fãs de cinema, uma vez que é dele o livro que deu origem ao elogiado "Tempo de despertar" - indicado aos Oscar 1991 de filme, roteiro e ator  - e a história que chegou às telas com o nome de "Amor à primeira vista" - romance estrelado por Val Kilmer e Mira Sorvino em 1999. Apesar do currículo diminuto, porém, Sacks tem a seu favor o dom de contar histórias reais sobre sentimentos verdadeiros, características um tanto raras em uma Hollywood afeita a custos astronômicos, rendas igualmente infladas e tramas que privilegiam a ação em detrimento da emoção. Por isso, não é surpresa que sua nova incursão nas telas tenha como tema central a relação entre pai e filho distanciados por ideologias políticas que se reaproximam graças a uma trágica doença neurológica. "A música nunca parou", dirigido pelo novato Jim Kohlberg, demorou mais de dois anos para estrear no Brasil e, apesar de seu lançamento discreto - para não dizer quase invisível dentre tantas campanhas milionárias de marketing que vendem filmes de ação e vencedores do Oscar - é capaz de agradar ao público que busca alternativas aos blockbusters.

Baseado no ensaio "O último hippie" - parte do livro "Um antropólogo em Marte" - "A música nunca parou" conta a história de Henry Sawyer (J.K. Simmons, surpreendendo em um papel dramático que está a anos-luz de distância de seus personagens tradicionais), um homem arragaido a seus ideais republicanos que, anos depois de afastar-se do filho rebelde, Gabriel (Lou Taylor Pucci), o reencontra sofrendo de um tumor cerebral que o mantém preso a memórias do passado. Incapaz de manter com o rapaz uma relação normal, Henry descobre, através de uma terapeuta (a sumida Julia Ormond), um caminho inesperado para reatar sua ligação: a música. Comunicando-se através de Beatles, Bob Dylan, Cream e principalmente Greatful Dead, pai e filho acabam reatando um relacionamento bruscamente interrompido - e redescobrindo o amor que sentem um pelo outro.

Não há nada de genial ou dramaticamente ousado em "A música nunca parou", que em muitos momentos parece ser um drama realizado para a televisão. No entanto, a forma suave e delicada com que o roteiro se desenvolve - com ocasionais flashbacks que explicam a complicada relação entre pai e filho - conquista o público sem muito esforço, aliada a uma trilha sonora escolhida a dedo e momentos de emoção verdadeira, que podem levar os mais sensíveis às lágrimas. Não é uma obra-prima, tampouco um filme merecedor de um balaio de Oscar, mas é honesto e simples, o que já imediatamente o diferencia da maioria dos ambiciosos filmes que lotam as salas de cinema. Vale dar uma conferida sem compromisso.

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WALT NOS BASTIDORES DE "MARY POPPINS"

Posted by Clenio on 18:22 in
Um dos mais adorados filmes da fase áurea dos estúdios Disney - quando ainda era supervisionado pelo próprio fundador - a comédia musical "Mary Poppins" não deixou que as décadas diminuíssem seu encanto diante das plateias que nunca se cansam de acompanhar as aventuras da babá mágica que conseguiu transformar a família Banks com seu carisma contagiante - e a ajuda de alguns "amigos" pouco convencionais, como pinguins e um guarda-chuva voador. O que pouca gente sabe, no entanto - e aí estão incluídos todos aqueles espectadores que sabem de cor e salteado as canções compostas especialmente para o filme - é que a transposição dos livros da escritora australiana P. L. Travers para o cinema esteve bem longe de ser tão divertido. Firmemente arraigada aos detalhes de sua criação, é Travers, uma solteirona quase irascível em suas convicções, a protagonista de "Walt nos bastidores de 'Mary Poppins'", a despeito do ridículo título nacional que elimina sem dó nem piedade todas as implicações do muito mais interessante "Saving Mr. Banks".

Dirigida por John Lee Hancock - que cometeu o abominável "Um sonho possível", ou seja, tem um currículo pouco recomendável - a história da odisseia que foi convencer Travers a permitir que seus personagens chegassem às telas é contada de maneira bem-humorada e sensível, ainda que muitas vezes escorregue em um sentimentalismo característico do estúdio do Mickey. A boa notícia, porém, é que esse sentimentalismo - ressaltado pela bela trilha sonora indicada ao Oscar - é equilibrado com um senso de humor delicado e puro, valorizado pela química entre Emma Thompson (na pele de Travers) e Tom Hanks (que, obviamente, criou um Walt Disney a milhares de quilômetros de distância do polêmico empresário que, segundo dizem, era xenófobo e misógino). O Disney de Hanks, aliás, é apenas o coadjuvante de uma trama que se concentra basicamente em explicar os motivos pelos quais a escritora era tão resistente em deixar que sua personagem mais famosa fosse "destruída" em uma adaptação - motivos esses que remetem à sua infância e sua relação com seu amoroso mas desajustado pai (interpretado por Colin Farrell).

O roteiro de "Saving Mr. Banks" não foge do previsível, nem se poderia esperar algo assim de um filme nascido sob os auspícios dos estúdios Disney - tradicionalmente avesso a qualquer transgressão moral e pródigo em produções direcionadas à família. No entanto, essa característica funciona às mil maravilhas na obra de Hancock, sublinhando o tom leve e carinhoso do roteiro e da história mesmo quando a infância dolorida de Travers vem à tona, revelando seus tramas e lembranças dramáticas - todas elas transmitidas com maestria por uma Emma Thompson excepcional e injustamente esquecida pelo Oscar, apesar da indicação ao Golden Globe. É Thompson quem carrega o filme nas costas, com uma atuação repleta de nuances e que transita confortavelmente entre o drama e a comédia. É graças a ela que o público - especialmente os fãs da personagem imortalizada por Julie Andrews nas telas - é capaz de se emocionar às lágrimas.

Para resumir, "Walt nos bastidores de 'Mary Poppins'" é uma bela homenagem a um dos filmes mais amados dos estúdios Disney e deve ser visto como tal. O fato de agradar até mesmo a quem não gosta do gênero do clássico - ou a quem nunca o assistiu - é apenas uma prova de que nem sempre é preciso maiores ambições para realizar uma obra sensível e agradável. É um carinho para a alma em uma época tão afeita ao cinismo ululante.

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OSCAR 2014 - PREVISÕES E TORCIDAS

Posted by Clenio on 22:16 in
Apesar do desrespeito da Globo - que comprou os direitos de transmissão apenas para evitar que outras emissoras os comprassem e simplesmente preferiu veicular o Carnaval, em mais um reflexo inconteste da imbecilidade generalizada do país - o mundo (e aqueles que tem sorte de contar com tv por assinatura) irá acompanhar amanhã mais uma edição da festa mais esperada pelos fãs de cinema, o Oscar. Quem não quiser esperar os comentários fúteis de Fernanda Lima e a boçalidade de José Wilker no compacto que a emissora carioca irá apresentar na segunda-feira à tarde (e do qual aparentemente se orgulha como uma Dilma feliz com a Copa do Mundo) terá que apelar para a Internet para saber quem sairá da cerimônia com as mãos vazias e quem terá a sorte de ter um "Academy award winner" como cartão de visitas daqui por diante. E como todo bom viciado em filmes tem suas apostas, torcidas e implicâncias, segue agora o que eu espero/acho/não quero que aconteça amanhã à noite.

MELHOR FILME - Mesmo que o número de nove indicados seja inflacionado pela tentativa da Academia em popularizar sua cerimônia, é lógico que bem poucos filmes tem reais chances de atingir o objetivo máximo de levar a estatueta principal para casa. Este ano, a disputa fica mesmo entre três obras - levando-se em conta que "Trapaça" foi lembrado em inacreditáveis dez categorias mas vem perdendo força com o tempo, que mostrou que ele é apenas um entretenimento correto mas sem nada de brilhante. Sendo assim, quem está realmente vivo na briga é a ficção científica state of art de Alfonso Cuarón ("Gravidade") e o potente e sério retrato de um período nefasto da história mundial feito por Steve McQueen ("12 anos de escravidão"). As probabilidades de que "Gravidade" faça um arrastão nos prêmios técnicos é muito grande - e Cuarón tem muitas chances na categoria de diretor - mas ainda existe a esperança de que "12 anos" surpreenda e leve o prêmio principal. Afinal de contas, se separaram as estatuetas quando não deveriam - "O segredo de Brokeback Mountain" perder para o insosso "Crash" ainda está entalado na garganta de muita gente - podem muito bem repetir o feito agora. Nessa briga feia, é uma pena, porém, que outros excelentes filmes indicados ("O lobo de Wall Street", "Ela", "Nebraska" e "Philomena") tenham chances quase nulas de vitória.

DIRETOR - É quase certo que Alfonso Cuarón sairá vitorioso da disputa contra McQueen, haja visto o histórico de premiações até agora favorável ao comandante de "Gravidade". Mesmo com Scorsese - que imprimiu uma contagiante energia em seu "O lobo de Wall Street" -, Alexander Payne - diretor do sensível "Nebraska" - e David O. Russell - o inexplicável queridinho da Academia dirigiu "Trapaça" - no páreo, o cineasta mexicano só é ameaçado mesmo pelo diretor de "12 anos de escravidão". E não seria fantástico que o primeiro Oscar de direção a um afro-descendente fosse justamente pela triste história contada por McQueen? Torcer não é pecado.

ATOR - Matthew McConaughey já está com um Oscar nas mãos por seu trabalho em "Clube de Compras Dallas", graças à tendência preguiçosa da Academia em premiar atores e atrizes que sofrem impressionantes transformações físicas para encarnar seus papéis. Em algumas ocasiões o prêmio é justo - Robert De Niro, Marion Cottilard, Charlize Theron, Tom Hanks - mas muitas vezes soa como um vício sem a menor graça para o espectador. Por mais que McConaughey esteja conseguindo se reinventar e deixar de lado a imagem de galã, porém, ele ainda está longe de ser ator melhor do que Bruce Dern ("Nebraska"), por exemplo, ou de ter tido uma atuação mais forte que a de Chiwetel Ejiofor ("12 anos de escravidão"). Porém, como o Oscar é um prêmio comercial acima de tudo, suas chances de vitória são imensas. Mas seria bem interessante uma virada e Leonardo DiCaprio ("O lobo de Wall Street") finalmente levar o Oscar que seus fãs pedem enlouquecidamente há milênios.

ATRIZ - Cate Blanchett. Sem mais. A atriz australiana dá um show de talento em "Blue Jasmine" e nem mesmo as acusações sórdidas (e a meu ver mentirosas) contra seu diretor, Woody Allen, devem atrapalhar seu caminho rumo ao palco para levar seu segundo Oscar - o primeiro foi como coadjuvante em "O aviador". A única atuação capaz de estragar os planos de Blanchett é a da fantástica Judi Dench ("Philomena"), mas é pouco provável. Quanto às outras candidatas é preciso dizer que Meryl Streep dispensa comentários e Amy Adams, por melhor que seja, não achou ainda um papel que justificasse uma estatueta. Sandra Bullock nem merece comentários.

ATOR COADJUVANTE - Seguindo a mesma linha de raciocínio da categoria de melhor ator, o prêmio de coadjuvante certamente será de Jared Leto por sua transformação física em "Clube de Compras Dallas". Leto está melhor do que o próprio McConaughey, e sua vitória será justa. Mas mesmo assim, dá uma dó que seu favoritismo absoluto eclipse o desempenho fenomenal do ainda subestimado Michael Fassbender - de "12 anos de escravidão". E é inexplicável que Daniel Bruhl - excelente como Nikki Lauda em "Rush" - tenha sido deixado de fora dos indicados para a inclusão de um Bradley Cooper nada brilhante em "Trapaça" (indicação que veio por osmose junto com a chuva de outras lembranças do filme).

ATRIZ COADJUVANTE - É aqui que o bicho pega. Jennifer Lawrence levou o Golden Globe por sua atuação em "Trapaça", mas Lupita Nyong'O vem correndo por fora por seu trabalho fascinante em "12 anos de escravidão" - e sua vitória seria absolutamente justa. Porém, como as categorias de coadjuvante sempre são as que mais surpreendem, não é errado sonhar que June Squibb ("Nebraska") leve o prêmio. Julia Roberts, por melhor que esteja em "Álbum de família" é quase carta fora do baralho, assim como Sally Hawkins, de "Blue Jasmine". Mas é uma categoria onde tudo pode acontecer.

ROTEIRO ORIGINAL - "Ela", de Spike Jonze, é um dos roteiros mais incríveis dos últimos anos, especialmente por sua originalidade (coisa rara nos cada vez mais previsíveis scripts hollywoodianos). Só por isso já mereceria o Oscar - e essa possibilidade é bem grande, só ameaçada pelo fato de "Trapaça" tê-lo como prêmio de consolação. "Blue Jasmine" e "Nebraska" são geniais e também mereceram a indicação. Só "Clube de Compras Dallas" soa deslocado.

ROTEIRO ADAPTADO - "12 anos de escravidão" perdeu o prêmio do sindicato de roteiristas somente porque não pode ser indicado, já que seu autor não é sindicalizado. Como o Oscar é mais democrático nesse ponto, pode ser que o filme de McQueen consiga se sobressair sobre o energético "O lobo de Wall Street" e o doce "Philomena". E não seria bacana ver "Antes da meia-noite" sair premiado como uma espécie de reconhecimento à qualidade rara da trilogia de Richard Linklater?

FOTOGRAFIA - Por mais que "Gravidade" dispare como líder na categoria, é inegável que "Inside Llewyn Davis" e "Nebraska" devem muito de seus climas a suas diretores de fotografia, que sublinham com precisão os sentimentos dos personagens - assim como acontece também com a iluminação do veterano Roger Deakins para "Os suspeitos". O filme de Cuarón, porém, ainda tem a vantagem de ser tecnicamente inovador, o que diminui, infelizmente, as chances dos demais candidatos.

MONTAGEM - Mais um prêmio que deve ir para a conta de "Gravidade". Só quem pode estragar a festa é "Capitão Philips", que vem sendo muito elogiado e que tem muito de sua força na edição ágil e claustrofóbica. "Trapaça" também pode surpreender - e sua vitória contra "Gravidade" seria bastante interessante.

TRILHA SONORA ORIGINAL - Mais uma estatueta para "Gravidade"? É possível, já que é bem provável que o filme de Cuarón seja o autor de um arrastão na festa de amanhã (um exagero, diga-se de passagem). Se eu pudesse escolher, o prêmio ficaria entre "Ela" e "Philomena".

CANÇÃO - "Let it go", da animação "Frozen", é a favorita, até porque desenhos sempre tem boas chances na categoria. A possível zebra seria a vitória do U2 com sua "Ordinary love", do filme "Mandela". A banda irlandesa merece um prêmio desde que foi surpreendida com a derrota para Eminem, em 2003.

FIGURINO - "O grande Gatsby", de Baz Luhrmann foi praticamente ignorado pela Academia. Uma estatueta que reflita uma de suas maiores qualidades seria bastante justo, já que os demais indicados não chegam ao brilhantismo da equipe do australiano. O que pode lhe atrapalhar é a boa vontade dos votantes em "Trapaça".

DIREÇÃO DE ARTE & CENÁRIOS - Mais uma estatueta que deveria parar nas mãos de "O grande Gatsby", ainda que "Gravidade" e "Trapaça" estejam no páreo, com seus lobbies assustadores. "Ela" e "12 anos de escravidão" são trabalhos bastante superiores.

EDIÇÃO DE SOM & MIXAGEM DE SOM & EFEITOS VISUAIS - Mais três estatuetas que provavelmente serão de "Gravidade", já que sua parte técnica vem sendo louvada unanimemente como inovadora. Qualquer outro filme que surpreenda nessas categorias pode ser considerado um heroi.

MAQUIAGEM - "Clube de Compras Dallas" deve sair-se vitorioso aqui, também, já que não seria nada bom ver "O cavaleiro solitário" e "Vovô sem-vergonha" com uma estatueta no final da festa, certo?


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INSIDE LLEWYN DAVIS, BALADA DE UM HOMEM COMUM

Posted by Clenio on 21:21 in
Não adianta. Entra ano e sai ano, os irmãos Coen continuam sendo uma voz única (por mais paradoxal que seja a afirmação, uma vez que eles são dois) dentro da mesmice do cinema americano. Mesmo que por vezes aceitem fazer o jogo da indústria - com filmes mais comerciais, como "O amor custa caro" e "Queime depois de ler", que ainda assim tem um quê de rebeldia disfarçada pelos elencos estelares - eles nunca abrem mão de imprimir em cada trabalho uma personalidade que os diferenciam do mainstream. Mais uma prova disso - se é que precisa de mais uma - é seu novo filme, o melancólico "Inside Llewyn Davis, balada de um homem comum", injustamente ignorado pela mesma Academia que encheu de louvores o fraco e previsível "Clube de compras Dallas". Repleto das qualidades que fazem da filmografia dos Coen uma das mais consistentes do cinema ianque desde sua estreia com a revisita ao filme noir "Gosto de sangue" (84), a odisseia do músico folk do título, vivido com intensidade crua pelo ótimo Oscar Isaac, é uma pérola de sensibilidade, humor negro e boa música, capaz de envolver a audiência sem precisar de grandes eventos dramáticos para isso.

Llewyn Davis, o protagonista, é um cantor folk sem lar, sem lenço e sem documento que transita pelo Greenwich Village de 1961, buscando uma chance de firmar-se na carreira. Seguindo o vento, ele conta com a ajuda dos amigos para sobreviver sem um endereço fixo - mesmo que em várias ocasiões surjam conflitos sérios entre eles, especialmente com Jean (Carey Mulligan, mais uma vez ameaçando roubar a cena), namorada e parceira artística do talentoso Jim (o cantor Justin Timberlake acertando mais uma vez em sua carreira cinematográfica). Sua vida itinerante frequentemente o faz questionar sua opção em tentar a vida artística, mas seu amor pela música sempre fala mais alto, mesmo quando tudo parece lhe gritar o contrário. Sua trajetória é ilustrada pela essencial trilha sonora supervisionada por T Bone Burnett e iluminada magistralmente pela câmera do francês Bruno Delbonnell (merecidamente indicada ao Oscar), que transforma cada cena em uma pequena obra de arte que reflete o estado de espírito atormentado - mas sempre inquebrantável - do protagonista.

Brilhantemente interpretado por Oscar Isaac - ator nascido na Guatemala e que já foi visto mas pouco notado em filmes como "Drive" (onde fazia o marido de Carey Mulligan) e "W/E, o romance do século" (dirigido por Madonna) - Llewyn Davis é mais um anti-heroi criado pelos Coen, um homem comum (exatamente como descrito pelo desnecessário subtítulo nacional) tentando superar os obstáculos de um cotidiano opressor e preto-e-branco contando apenas com sua quase inquebrantável força de vontade e seu talento quase nunca devidamente reconhecido (e é diferente na vida real?). Passando por momentos ora surreais - como a carona com um desagradável John Goodman - ora de um tristeza quase tangível, o filme conquista pela sofisticação de sua narrativa e pela delicadeza estonteante de seu visual. É um pequeno grande filme que merece ser reconhecido como tal - nem que seja para provar que nem só de elaborados efeitos especiais vive o cinema americano.

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PHILOMENA

Posted by Clenio on 16:30 in
Uma jovem irlandesa católica tem seu filho pequeno entregue à adoção pelas freiras do convento onde vive, como forma de punição por seus pecados da carne. Quase cinco décadas mais tarde, torturada pelas lembranças do menino e decidida a fazer o possível para reencontrá-lo, a enfermeira aposentada une-se a um jornalista acostumado com os bastidores da política - e preso em um impasse profissional - para juntar as pistas sobre seu paradeiro. O jornalista, a princípio pouco interessado na história acaba, porém, descobrindo que reportagens de "interesse humano" podem ser tão gratificantes quanto escândalos do poder quando passa a conviver com a complexa Philomena Lee.

Parece trama de telenovela, mas o roteiro de "Philomena" - indicado ao Oscar de melhor filme do ano, mas eclipsado pela mídia em torno de produções milionárias entediantes como "Gravidade" - é real, é revoltante e, mais importante ainda, conquista por escapar com maestria das armadilhas que uma história assim oferece a cada momento. Philomena, a protagonista vivida com sutileza emocional pela sempre competente Judi Dench (também indicada ao prêmio da Academia), é uma mulher triste, incompleta e remoída pela culpa cristã que a acompanhou a vida inteira, mas isso não a impede de brindar o público com um senso de humor inesperado, uma esperança inquebrantável e uma grandeza de espírito surpreendente. Fugindo das possibilidades melodramáticas da história contada pelo jornalista Martin Sixmith em seu livro "The lost child of Philomena Lee", o roteiro de Jeff Pope e do ator Steve Coogan (que também é produtor do filme e interpreta Sixmith) é redondo e ágil, nunca se deixando levar pelas lágrimas fáceis. É triste, sim, e emociona quando necessário, mas jamais se permite mergulhar no dramalhão barato. Soma-se a ele a direção precisa de Stephen Frears - um cineasta de extremo bom-gosto e sensibilidade - e a atuação brilhante de Dench e tem-se um dos filmes mais merecedores de figurar entre os melhores da temporada. E, não bastasse isso tudo, ainda consegue encontrar espaço para discutir religião, culpa, rancor e homossexualidade. Sim, caro leitor, "Philomena" é um tapa na cara dos fundamentalistas - de qualquer religião que força dogmas absurdos em detrimento da felicidade e do prazer.

Apesar do espaço aberto para reflexões a respeito dos erros que as crenças religiosas podem cometer e da melancolia de seu tema, "Philomena" é, acima de tudo, um filme sobre a esperança, sobre o perdão e sobre a tolerância. Com sua alma generosa e sua tenacidade admirável, Philomena acaba sendo um exemplo de ser humano, capaz de um perdão que muitos espectadores jamais dariam. E essa grandeza - da personagem e da atriz - transformam o filme de Frears em uma pequena obra-prima de delicadeza. Se Cate Blanchett perder o Oscar (bate na madeira), somente Dench seria uma escolha mais acertada.



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NEBRASKA

Posted by Clenio on 19:02 in
A filmografia de Alexander Payne frequentemente se debruça sobre um objeto cada vez mais negligenciado pelos cineastas americanos: o ser humano. Obras como "Ruth em questão", "Eleição",  "As confissões de Schmidt", "Sideways" e "Os descendentes" traem insofismavelmente sua preferência por histórias cujo principal objetivo é investigar - sempre com um particular senso de humor ácido - as idiossincrasias de pessoas simples em situações aparentemente banais. Seus protagonistas não são super-humanos perfeitos nem tampouco vilões desprovidos de qualquer qualidade. O que interessa à Payne - e que o vem destacando entre seus colegas de profissão - são os mecanismos que movem pessoas comuns em direção a objetivos tão mundanos como vencer uma eleição para um grêmio estudantil, obter o direito de fazer um aborto ou descobrir quem é o amante de sua mulher. Seu novo filme - e talvez o melhor de sua carreira - segue esse mesmo caminho: "Nebraska", indicado a seis Oscar (incluindo filme, direção, ator e roteiro original) é uma pequena obra-prima sobre situações cotidianas que conquista pela simplicidade de sua trama, por seu inesperado tom cômico e por atuações capazes de derreter o mais insensível dos corações.

Fotografado em um belo e melancólico preto-e-branco que ecoa a nostalgia que perpassa a alma de seu protagonista, "Nebraska" é um mergulho bem-sucedido no modo de vida das cidades do interior dos EUA e nas entranhas das relações familiares, movidas a interesse, meias-verdades e até amor verdadeiro. Tudo começa quando Woody Grant (Bruce Dern), um mecânico aposentado e que apresenta sinais de demência, recebe por correio uma carta que lhe aponta como o possível vencedor de 1 milhão de dólares. Acreditando piamente na informação - a despeito dos avisos de sua família de que tudo não passa de propaganda enganosa - Grant resolve partir de sua pequena cidade no interior de Montana em direção a Lincoln, no Nebraska, onde está sua alegada fortuna. Para não deixar o pai sozinho, seu filho caçula, David (Will Forte) decide acompanhá-lo, para desgosto de sua mãe, Kate (June Squibb), já cansada dos caprichos e das crises do marido. Durante a viagem, porém, Woody e David são obrigados a fazer uma escala na cidade onde mora boa parte da família - e de onde o esperançoso idoso saiu logo que casou-se. A volta de Woody à cidade - e a subsequente notícia de sua nova condição financeira, que muda a forma como todos o enxergam - acaba sendo o gatilho para que ele acabe se aproximando do filho, com quem nunca teve uma relação das mais carinhosas.

Escrito com uma verve deliciosa que equilibra com precisão diálogos engraçadíssimos e momentos de pura sensibilidade dramática, "Nebraska" analisa a relação de Woody Grant com seu passado de maneira sutil, valorizada pela imersão do sensacional Bruce Dern no papel de sua vida - um Oscar para ele seria muito mais merecido do que para o festejado Matthew McConaughey. Dono de um olhar expressivo que transmite muito mais do que longos discursos emocionados ou impressionantes transformações físicas, o pai da atriz Laura Dern - protagonista de outro filme de Payne, "Ruth em questão" - constrói um homem repleto de sentimentos presos e vontades reprimidas que só não se torna antipático devido à sua interpretação exemplar. Dividindo a maioria de suas cenas com o ótimo Will Forte - perfeito na discrição de seu trabalho como um filho tentando compreender a personalidade complicada do pai - e com a sensacional June Squibb - hilariante como sua rabugenta esposa - Dern mostra do que um real ator é feito, explorando cada momento com seu talento único.

"Nebraska" provavelmente vai sair do Oscar sem nenhuma estatueta, o que é uma pena. Mas é preciso reconhecer que é um dos mais fascinantes, espertos e delicados filmes da temporada, capaz de emocionar e fazer rir sem ofender a inteligência da plateia. Altamente recomendável.

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DIANA

Posted by Clenio on 18:41 in
Das duas uma: ou a personalidade pública de Lady Di era muito mais interessante do que seu equivalente no dia-a-dia ou o filme de Oliver Hirschbiegel baseado no livro de Kate Snell conseguiu a proeza de estragar uma personagem fascinante ao esvaziar totalmente sua complexidade ao retratá-la como uma protagonista de romances ao estilo "Julia" e "Sabrina". Durante as desnecessariamente longas duas horas do filme, "Diana", a princesa não faz muito mais do que tentar convencer o médico paquistanês Hasnat Khan (Naveen Andrews, o Said da série "Lost") a casar-se com ela, a despeito das suas diferenças culturais, da paixão dele pela medicina e pelo fato de que ela era a mulher mais famosa do mundo e jamais conseguiria levar uma vida normal a qualquer mortal. Essa opção em fazer dela uma mulher comum, ao contrário de aproximá-la da plateia e do público acostumado com sua persona célebre, apenas joga no lixo a oportunidade de criar um filme digno de figurar entre as grandes cinebiografias do cinema - olimpo no qual o mais famoso trabalho de Hirschbiegel, "A queda", tem lugar garantido desde sua estreia.

Por melhor atriz que seja, Naomi Watts não consegue ultrapassar a mímese, presa que está em um roteiro superficial, que não explora a contento suas inúmeras possibilidades. Os trabalhos humanitários de Diana são lembrados, mas parecem jogados sem muito critérios entre uma discussão e outra dos protagonistas, que passam boa parte do filme repetindo praticamente os mesmos diálogos sem chegar a lugar algum. Diana, um dos maiores ícones de elegância do século XX e uma das mais amadas personalidades de sua época, soa como uma mulher carente e incapaz de lidar com suas próprias fraquezas emocionais, a ponto de submeter-se a uma relação onde assume um papel de constante submissão (o que as feministas acham do fato de vê-la limpando o apartamento do namorado como forma de reconquistá-lo?). Psicologicamente é compreensível que ela buscasse a aceitação de alguém - como ela mesma diz em uma cena, "nunca fui aceita em nenhuma família, nem na minha nem depois do casamento." - mas o roteiro mais uma vez falha ao ignorar esse caminho muito mais interessante para concentrar-se em cenas quase preguiçosas de conflito romântico.

Não se pode esperar que um filme conte uma vida inteira - sob pena de uma superficialidade inevitável. Mas o fato é que, mesmo optando pelo recorte de um período específico da existência de sua protagonista, "Diana" carece de uma profundidade mínima. O filme passa por cima de acontecimentos cruciais da história da princesa - como seu relacionamento delicado com a realeza e com a mídia - sem focar-se em nenhum deles, por mais interessantes que possam ser. Lógico, é uma questão de escolha dedicar-se ao romance, mas isso não é impedimento para uma inteligência maior na forma de contar sua história. Da maneira como está, fica difícil até mesmo compreender a natureza da relação entre Diana e Dody Fayed - em um cena ela é avisada de um convite para jantar com ele e no momento seguinte já está comprometida, sem que ao público seja fornecida nenhum outra informação a respeito. Por mais que a história seja conhecida, é uma falha que incomoda.

Ignorado pelas cerimônias de premiação - quando muita gente acreditava que ao menos Watts seria lembrada por seu desempenho - "Diana" passou em brancas nuvens, inclusive em termos de bilheteria. Culpa da falta de ousadia de seu diretor (algo surpreendente, uma vez que o alemão não se deixou intimidar quando retratou Hitler com um lado frágil em seu filme mais famoso), da superficialidade do roteiro e da escolha errada de foco. Preferível rever "A rainha", que é muito mais interessante.





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O CONSELHEIRO DO CRIME

Posted by Clenio on 18:29 in
O roteiro - primeiro trabalho diretamente para o cinema do escritor Cormac McCarthy, que escreveu os romances que deram origem aos filmes "Onde os fracos não tem vez" e "A estrada" - é repleto de diálogos inteligentes e fortes. A direção do veterano Ridley Scott é inspirada, com cenas de grande impacto visual. O elenco é composto por atores que não precisam provar nada a ninguém (Michael Fassbender, Brad Pitt, Javier Bardem, Penelope Cruz e vá lá, Cameron Diaz). Então por que "O conselheiro do crime" não chega nem perto do grande filme que poderia ser?

Criando mais uma trama onde a amoralidade é a mola-mestra, McCarthy usa e abusa de seu talento em forjar frases de efeito e diálogos crus e diretos, mas esbarra justamente em sua maior qualidade como escritor: a prolixidade. Não são poucos os momentos no filme em que os personagens tecem longas elocubrações filosóficas a respeito de destino, violência e morte, o que não seria nada mal se tal artifício não soasse redundante e, pior ainda, não truncasse o ritmo. Além disso, em sua tentativa de dar densidade dramática a seus personagens, McCarthy acaba deixando de lado o que mais importa em um produto cinematográfico: um conflito dramático de consistência (e junto com ele, a clareza narrativa imprescindível para que o público compre o drama proposto).

Começando com uma longa sequência de alta voltagem erótica entre o advogado vivido por Michael Fassbender e sua bela namorada Laura (Penelope Cruz), "O conselheiro do crime" já demonstra que sua prioridade são os personagens e suas sensações, em detrimento da uma trama sólida. O protagonista vivido magistralmente por Fassbender - e cujo nome nunca é citado - é ambicioso e amoral, características que acabam sendo atrativos para que ele caia na teia do excêntrico Reiner (Javier Bardem), que o convence a tomar parte em um milionário esquema de tráfico de drogas via México. Mesmo alertado pelo misterioso Westray (Brad Pitt) de que um erro junto aos traficantes mexicanos pode significar a diferença entre vida e morte - a sua e a de quem ama - o advogado aceita os termos da transação apenas para, em seguida, ver-se envolvido em uma trama de extrema violência e crueldade.

O problema maior em "O conselheiro do crime" é que sua trama é tão confusa - com personagens novos surgindo a cada momento e às vezes sem muita relevância - que o público fica tentando compreendê-la, ao invés de envolver-se no drama do protagonista, por mais que Fassbender entregue outra interpretação impecável. Tal indecisão - entre um drama quase filosófico e um filme de ação sem ação até seu terço final - compromete até mesmo o pretenso clímax, quando a identidade do real vilão é revelada sem maior impacto junto à plateia e o desfecho poderoso, que sublinha o tom pessimista impresso pela bela fotografia de Darius Wolski e pelos discursos espalhados pela história. Uma pena que tal desfecho - valorizado pelo desempenho de Michael Fassbender - seja uma tentativa tardia de Scott de salvar seu filme, a essa altura já abandonado por uma plateia exausta de tentar encontrar sentido em uma trama carente deles.

Dentro da carreira repleta de sucessos de Ridley Scott - "Alien, o oitavo passageiro", "Blade Runner", "Thelma & Louise", "Gladiador" - "O conselheiro do crime" deverá figurar entre seus maiores fracassos. Mas isso não significa que, com o tempo, não possa vir a ser valorizado justamente por sua coragem em romper com as expectativas que o cercavam.

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A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS

Posted by Clenio on 19:36 in
É apenas uma questão de tempo. Basta que um livro chame um pouco de atenção para que os produtores de cinema corram para garantir os direitos de adaptação para a telona. Não foi diferente com "A menina que roubava livros", best-seller do escritor australiano Markus Zusak publicado no Brasil pela editora Intrínseca. Mais uma história a contar os horrores da II Guerra Mundial sob um ponto de vista infantil - assim como, entre outros menos cotados, "Esperança e glória", "Império do Sol" e o recente "O menino do pijama listrado" - o filme de Brian Percival (cineasta sem nenhum trabalho de grande visibilidade comercial até a data) conquistou uma solitária indicação ao Oscar - trilha sonora original, pelo veterano John Williams - e, se não atinge todas as notas que poderia graças à sua poderosa trama, ao menos é delicado e sensível como deveria. E deve agradar aos fãs da obra original, já que a segue com o máximo de fidelidade possível.

Narrada pela própria morte - artifício que funciona mais no livro do que em sua versão cinematográfica, por razões óbvias - a trama de "A menina que roubava livros"gira em torno da jovem Liesel (a canadense Sophie Nélisse), que, separada da família e depois de ver a morte do irmão pequeno, é adotada por um casal sem filhos de uma pequena cidade alemã. O casal - interpretado pelos sempre fascinantes Geoffrey Rush e Emily Watson - que aparentemente não tem nada de altruísta e utiliza-se da menina para complementar a renda, tem sua rotina transformada quando passa a esconder em seu porão um refugiado judeu. O risco que correm com a desobediência aos valores do III Reich não os demovem da ideia de mantê-lo, especialmente quando surge entre ele e Liesel uma poderosa amizade, fortalecida pelo amor aos livros. Com a dificuldade de acesso às obras - muitas delas proibidas pelo governo - a menina começa então a roubar os livros da biblioteca de um oficial nazista cujas roupas são lavadas por sua mãe adotiva.

Contado sem maiores arroubos de criatividade, "A menina que roubava livros" é valorizado pela produção caprichada e pelo tema, ainda que não acrescente nada de novo à vasta filmografia relativa a ele. Pode emocionar aos mais sensíveis - principalmente em seu final mais abrupto do que deveria - mas carece de um diferencial que o faça ser inesquecível.

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NÃO FOI UM "SIMPLES BEIJO"

Posted by Clenio on 05:34 in
Não, não é exagero comemorar. Pra vocês que nunca tiveram que exigir e batalhar por respeito pode parecer imponderável que seja necessário um auê desse tamanho por causa de um "simples beijo". Acontece que não foi um "simples beijo". Deveria ter sido, como todos os milhares de beijos que são exibidos diariamente há mais de 50 anos. Mas não foi. Mais que um beijo, o que aconteceu entre Félix e Niko foi a quebra de um paradigma, foi a derrota de uma violenta onda de fundamentalismo doentio que vem ameaçando a liberdade da população - e se não foi tanto, ao menos foi um batalha vencida. Uma grande batalha, apesar de não parecer a vocês que jamais perderam noites de sono tentando encontrar uma maneira de encaixar-se em uma sociedade atolada de regras arbitrárias de comportamento. O "simples beijo" - no horário nobre, mas mesmo assim bem mais tarde do que o normal, para não assustar os sensíveis pais de família conscienciosos que não se importam em nutrir os filhos com uma dieta de violência física nauseante mas ficam chocados com carinhos entre pessoas do mesmo sexo - desafiou bolsonaros, felicianos, malafaias e outros menos cotados mas tão nocivos quanto em suas tentativas infames de impedir o amor e o sexo que fogem de seus conceitos odiosos - e que dizem mais respeito a suas próprias limitações de caráter do que a deus, seja ele qual for.

O "simples beijo" não quis afrontar a sociedade. Tampouco teve intenções de despertar discussões, mesmo porque não há o que se discutir: um beijo gay na televisão não é capaz de transformar a sexualidade de ninguém - seja uma criança, um adolescente ou um adulto - mas pode sim ser o pontapé inicial para uma convivência mais pacífica, justa, tolerante, elegante e sincera. O "simples beijo" não tenta impor um estilo de vida - se é que pode-se chamar assim - mas apenas reflete uma realidade, com um atraso justificável, graças ao fanatismo religioso e moral banhado em hipocrisia que assola o país desde que votos passaram a valer mais do que vidas - especialmente se forem vidas "desses gays desregrados que tentam obrigar todos a fazerem parte de sua doença." O "simples beijo" empurrou, para a sala de estar, aquele móvel que estava pegando poeira na área de serviço, timidamente tentando ser útil, mas sendo renegado por não combinar com a decoração. O "simples beijo" afastou as cortinas que separavam pais e filhos, mostrando que em amor não há vulgaridade, não há espaço para rancor, não há anormalidade. O "simples beijo" escancarou o preconceito de quem se diz livre dele e estabeleceu a linha divisória entre com quem vale a pena conviver e de quem é melhor se afastar para o bem da alma.

Não foi um "simples beijo". Foi um desabafo, foi um grito, foi uma passeata. Foi um discurso em prol de todos aqueles que já se sentiram sufocados pela discriminação, pelo sentimento de inadequação, pelo medo que a culpa (religiosa, parental, social) impõe. Foi a ilustração - em cores, movimento e sutileza - de uma família feliz, harmoniosa e cercada por um respeito com que esses doentios homofóbicos podem apenas sonhar. Para você, que nunca ouviu piadinhas e nunca precisou engolir em seco provocações humilhantes, talvez tenha sido apenas um "simples beijo". Mas esse minúsculo passo para você foi um salto gigantesco para todos nós, em direção a um momento no tempo em que a expressão "simples beijo" não precise mais de aspas.

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O GRANDE HERÓI

Posted by Clenio on 17:54 in
Alguns já reclamaram que se trata de mais uma obra que exalta o patriotismo americano - como se ufanismo fosse crime ou alterasse a qualidade de um filme em termos cinematográficos. Mas o fato é que "O grande herói", dirigido pelo ator/cineasta Peter Berg - que já havia demonstrado seu interesse por temas polêmicos em "O reino", de 2007 e comandou o mastodôntico fracasso "Battleship, a batalha dos mares" em 2012 - passou por cima de qualquer ideologia política para criar um poderoso drama de guerra que vem surpreendendo nas bilheterias ianques (tradicionalmente avesso a produções do gênero, salvo raras exceções) e caindo no gosto da crítica - foi eleito um dos dez melhores filmes do ano pela conceituada National Board of Review.

A encenação crua e realista de Berg de uma história real, ocorrida em 2005, durante a guerra no Afeganistão - e que já estava nos planos do diretor desde 2008, quando ele leu o livro que deu origem ao roteiro - remete às duras e violentas cenas de "Falcão negro em perigo", que deu a Ridley Scott uma indicação ao Oscar de diretor em 2002. Porém, enquanto Scott aproveitou a oportunidade para explorar seu virtuosismo técnico, sem focar-se a contento nos dramas de seus inúmeros personagens, Berg segue um caminho quase inverso. Sim, as cenas de conflito físico são dirigidas com segurança invejável e não poupam a audiência de sentir-se dentro da ação - para o que colabora também a maquiagem detalhista e a edição de som (que concorre ao Oscar) - mas o roteiro também se dá ao trabalho de dedicar boa parte de seu segundo ato ao desenvolvimento de seus protagonistas. Logicamente não há tempo para uma maior profundidade, mas contar com um elenco coadjuvante formado por Emile Hirsch, Eric Bana e Ben Foster (especialmente o último, em mais uma atuação estupenda) já é meio caminho andado para provocar a empatia essencial a uma história que, de outra maneira, seria apenas mais um filme de guerra a preencher as sessões noturnas da televisão.

Outro ponto favorável a "O grande herói" - que conta a história de um grupo de fuzileiros americanos que veem falhar sua missão de capturar um líder da Al Qaeda nas montanhas do Afeganistão e precisam lutar pela sobrevivência - é a presença de seu ator central, Mark Wahlberg. Surgido no mundo do entretenimento como modelo de cuecas Calvin Klein e posteriormente como o rapper Marky Mark, Wahlberg se reinventou como ator respeitado, presente em filmes prestigiados como "Boogie nights", "Três reis" e "Os infiltrados", de Martin Scorsese, pelo qual chegou a ser indicado ao Oscar. Na pele de Marcus Luttrell - que lidera a missão e acaba encontrando a salvação onde menos poderia esperar (com a ajuda do grande herói do título nacional) - o ator mostra que sabe escolher boa parte dos projetos dos quais participa (deixemos de lado bobagens como "Sem dor, sem ganho") e se manter sempre em evidência na fugaz fogueira das vaidades hollywoodianas com filmes de visibilidade e qualidade dramática.

Uma das boas surpresas da temporada, "O grande herói" ganha o público logo nos créditos de abertura - em cenas que mostram o rígido treinamento dos fuzileiros - e mantém sua atenção durante duas horas de adrenalina nas alturas, que se encerram com uma melancólica versão da clássica "Heroes", de David Bowie, na voz de Peter Gabriel. Um filme imperdível.

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JOGOS VORAZES - EM CHAMAS

Posted by Clenio on 16:30 in
Já está virando meio tradição dentro da indústria hollywoodiana: talvez por não precisar apresentar seus personagens e poder partir direto pra ação, talvez porque seus criadores sabem que a exigência do público aumenta ou talvez porque existe uma maior familiaridade com o material, os segundos capítulos da maioria das franquias cinematográficas contemporâneas conseguem ser melhor que o original. Foi assim com o "Homem-aranha 2" de Sam Raimi, com o "Batman, o cavaleiro das trevas", de Christopher Nolan e com "X-Men 2", de Bryan Singer. E é assim com "Jogos vorazes, em chamas", continuação do mega bem-sucedido filme de 2012 , baseado na trilogia escrita por Suzanne Collins. Agora sob a batuta de Francis Lawrence - cujo currículo inclui o interessante "Constantine" e a adaptação de "Eu sou a lenda" com Will Smith - a história de Katniss Everdeen em sua luta pela sobrevivência em um jogo de vida ou morte cada vez mais violento (e com intenções sociopolíticas nada justas) se t

Conforme dito acima, "Em chamas" tem a vantagem de não precisar perde tempo explicando sua trama e apresentando seus personagens - e para isso é crucial que a audiência já tenha assistido ao primeiro capítulo. Quando o filme começa, com eventos que acontecem um ano após o término do filme original, Katniss (Jennifer Lawrence, a nova queridinha de Hollywood) e seu parceiro Peeta Mellark (Josh Hutcherson), vencedores da 74ª edição dos jogos do título, começam uma turnê para todos os distritos, como forma de aproximar-se da população e dar credibilidade ao governo. Porém, ao perceber a desilusão do povo em relação os problemas sociais que os cercam, o casal (forjado para vencer os jogos) passa a questionar a liderança do Presidente Snow (Donald Sutherland). Temendo uma revolução, o presidente cria uma nova regra, que obriga todos os vencedores prévios a lutar novamente - sua intenção é acabar com a vida de Katniss, impedindo assim um levante popular.

Sob a forma de um filme de ação direcionado ao público infanto-juvenil - o que explica a violência apenas moderada considerando as possibilidades da trama - Lawrence aproveita a história de Suzanne Collins para, exatamente como aconteceu no primeiro, discutir temas de relevância, como desigualdade social, fascismo e manipulação por parte da mídia. Logicamente, por tratar-se de uma produção cujo público-alvo não esteja exatamente disposto a querelas políticas, o subtema é tratado apenas superficialmente (ainda que seja bastante claro para qualquer pessoa minimamente esclarecida), como pano de fundo para uma obra que oferece exatamente aquilo que sua plateia deseja: cenas de ação bem realizadas, um triângulo amoroso eficiente, personagens cativantes (interpretados por atores de qualidade inquestionável, como Philip Seymour Hoffman e Jeffrey Right) e um ritmo incapaz de cansar, apesar dos longos 146 minutos de projeção. Somadas a um criativo visual - refletido no figurino irreverente de Trish Summerville - e um roteiro redondinho - co-escrito por Simon Beaufoy, vencedor do Oscar por "Quem quer ser um milionário?" - essas qualidades fazem com que o único problema do filme seja justamente ter que esperar até o fim do ano pelo próximo capítulo - que, segundo mais uma nova tradição imposta pela busca por lucros, será dividido em dois filmes.

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A VIDA SECRETA DE WALTER MITTY

Posted by Clenio on 19:44 in
Em 1947, uma adaptação do conto de James Thurber chamado "The secret life of Walter Mitty" chegou às telas de cinema, com o título de "O homem de 8 vidas", estrelado por Danny Kaye. No filme, o personagem-título era um introvertido revisor de livros baratos que se via envolvido em uma conspiração política quando encontrava com uma misteriosa mulher de posse de um ainda mais misterioso livro. Pouco lembrado pelas plateias contemporâneas, o filme de Norman Z. McLeod tem pouco a ver com uma nova versão do conto de Thurber, dirigida e estrelada por Ben Stiller. Adaptando a trama para a atualidade - mais precisamente para o ano de 2009, quando a revista Life saiu das bancas de jornais para transformar-se em um site da Internet e consequentemente teve que dispensar centenas de funcionários - e utilizando-se dos melhores efeitos visuais que o orçamento de 90 milhões de dólares pode comprar, Stiller assina um produto simpático e bem realizado, mas que peca em sua indecisão entre comédia, drama e filme de ação.

O Walter Mitty de Stiller - que teve Sacha Baron-Cohen, Jim Carrey, Owen Wilson e Mike Meyers entre seus possíveis intérpretes - trabalha no arquivo de fotos da revista Life, em um emprego que não exige maiores talentos sociais, mas que o faz manter uma cordial relação com o famoso fotógrafo Sean O'Connell (Sean Penn), cuja vida de aventuras e liberdade ele inveja conformadamente. Apaixonado pela colega de trabalho Cheryl Melhoff (Kristen Wiig) - a quem tenta contatar através de um site de relacionamentos - Walter Mitty encontra o desafio de sua vida quando recebe a missão de encontrar o negativo de uma foto de O'Connell que seu chefe exige que seja a capa da última edição impressa da revista. Seguindo pistas deixadas por outros trabalhos do fotógrafo, ele acaba embarcando em uma aventura que só mesmo seus sonhos mais radicais e sua imaginação criativa poderiam sonhar.... e que começa na Groenlândia.

"A vida secreta de Walter Mitty" tem inúmeras qualidades, desde a precisão de seus efeitos visuais (utilizados com parcimônia e sutileza) até seu elenco, que inclui a sempre fascinante Shirley MacLaine. Também é feliz ao examinar pessoas que muitas vezes ficam presas à sua imaginação em detrimento de levar uma vida mais ativa. Mas Stiller - conhecido pela direção dos hilariantes "Zoolander" e "Trovão tropical" - parece não sentir-se à vontade quando fala sério. Sempre que o filme começa a perder sua ingenuidade e seu nonsense há um queda no ritmo que compromete o resultado final. Felizmente os bons momentos que o ator/diretor consegue sempre que deixa sua veia cômica aflorar - e a presença magnética de Sean Penn em uma única sequência que vale por todas - fazem com que uma sessão descompromissada valha a pena.

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ELA

Posted by Clenio on 17:49 in
Deve ser interessante conversar com Spike Jonze. Em um carreira como cineasta que conta com apenas quatro obras, o ex-marido de Sofia Coppola, cujo inicio de carreira foi dirigir videoclipes de artistas como Bjork e Fatboy Slim é, sem qualquer dúvida, uma das mais criativas mentes da engessada Hollywood do século XXI, capaz de legar ao público trabalhos que tem como principal característica a ousadia temática e narrativa. Foi assim com o bizarro "Quero ser John Malkovich" - que lhe deu, de cara, uma indicação ao Oscar de diretor - com o metalinguístico "Adaptação" - que deu a Meryl Streep um de seus papéis mais desafiadores - e até com o infantil "Onde vivem os monstros" - que fugiu da esfera limitadora da faixa etária para emocionar muitos adultos. Não é de estranhar, portanto, que seja seu nome que esteja nos créditos de "Ela", o estranho no ninho entre os indicados ao Oscar de melhor filme de 2013.

Estranho no ninho? Sim. Em um ano em que o favoritismo está entre o superestimado "Gravidade" - que à parte os efeitos visuais é apenas mais um filme comercial bem feitinho - e o socialmente relevante "12 anos de escravidão" - que apesar das qualidades é o tipo de obra que a Academia adora cobrir de láureas - é surpreendente que uma obra como "Ela" tenha encontrado seu espaço. Bizarro desde seu tema - a história de amor entre um homem e um sistema operacional de última geração criado a partir das necessidades do proprietário - até a forma com que lida com ele - sem apelos sentimentais mas ainda assim emocionalmente potente - o filme de Jonze foge bastante do padrão dos tradicionais romances produzidos em Hollywood por pelo menos mais uma razão: exigir que o público não desligue o cérebro para acompanhar sua trama.

Em um futuro não muito distante, o introvertido Theodore (Joaquin Phoenix), ainda machucado pelo fim de seu casamento, compra um novo sistema operacional, que pode ser moldado de acordo com a personalidade e as necessidades do proprietário. Batizado com o nome de Samantha, o SO passa a lhe fazer companhia em seus momentos de solidão e, surpreendentemente, surge entre eles um relacionamento que ultrapassa os limites tecnológicos. Apaixonados um pelo outro, os dois precisam aprender a lidar com a nova situação - não tanto por causa das pessoas a seu redor, acostumadas com os avanços da informática, mas por causa das próprias limitações físicas e emocionais da bizarra situação, bem como a dificuldade de Theodore de conviver com seus próprios sentimentos.

Interpretado magistralmente por Joaquin Phoenix - a escolha ideal para personagens à margem do convencional - Theodore retrata com perfeição um geração insegura em termos sentimentais que, mesmo cercada de tecnologia e até mesmo de pessoas de carne e osso, não consegue libertar-se do medo da solidão e do sofrimento. Perito em escrever cartas de amor para estranhos - sua profissão - ele é incapaz de deixar para trás um relacionamento fracassado e apela para o que deveria ser um porto seguro, apenas para descobrir que o amor é, definitivamente, algo intangível e imensurável, que foge de qualquer padrão e cálculo. É apaixonante a maneira com que Jonze consegue contar sua história sem contar muito mais do que com o trabalho de Phoenix, a voz de Scarlett Johansson, pouquíssimos coadjuvantes (destaque para a sempre ótima Amy Adams) e um visual clean, que transmite a sensação de vazio que perpassa a existência do protagonista até seu encontro com Samantha. A bela trilha sonora - indicada ao Oscar, assim como a canção "The moon song", delicada e comovente - completa o quadro, comentando a ação sem interferir em excesso nos devaneios de Theodore.

Ao mesmo tempo de uma complexidade brilhante e uma simplicidade estontente, "Ela" talvez seja o melhor filme da carreira de Jonze. E isso não é pouco. Se repetir-se na festa do Oscar, o prêmio de roteiro que já ganhou no Golden Globe não seria nada menos do que absolutamente justo.

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CLUBE DE COMPRAS DALLAS

Posted by Clenio on 17:53 in
Não é preciso ser especialista em cinema em geral - e nos meandros da Academia que oferece o Oscar em particular - para saber que um ator (ou atriz) que tem coragem de despir-se da vaidade para encarnar um papel tem enormes chances de sagrar-se vencedor de uma estatueta dourada. Exemplos não faltam, e provavelmente no dia 02 de março próximo a lista vai contar com outros dois nomes: Matthew McConaughey e Jared Leto, que vem fazendo uma limpa nas cerimônias de premiação consideradas prévias do prêmio máximo do cinema americano. Seus desempenhos são tão impactantes que, a despeito da qualidade duvidosa de "Clube de compras Dallas", levaram a obra de Jean-Marc Vallé ao Olimpo de duas das categorias mais nobres da premiação: filme e roteiro original.

Não que o filme seja exatamente ruim, mas dava para esperar muito mais da direção de Vallé, que conquistou todo mundo com o simpático e criativo "C.R.A.Z.Y", em 2005. Seu trabalho em "Clube de compras" é mecânico, quadrado e - pior dos pecados para um filme que trata de um assunto tão potencialmente dramático - indiferente. Mesmo que fique evidente a entrega de McConaughey e Leto a seus papéis é dificil envolver-se com a narrativa, porque o roteiro não permite a aproximação do público, tratando tudo com um distanciamento que, se mirou na neutralidade, acertou na frieza. Por mais que os atores - especialmente Leto, mostrando que seus bons trabalhos em filmes como "Réquiem para um sonho" e "Capítulo 27", em que interpretava o assassino de John Lennon, não eram sucessos isolados - se esforcem em cativar a audiência, a opção de Vallé em fugir do sentimentalismo contrasta com a potência emocional da história real de Ron Woodroof, um eletricista mulherengo do Texas que, contaminado com o vírus HIV em 1985 - portanto, quando a doença ainda era uma incógnita junto à medicina e era tratada como exclusividade dos homossexuais - precisa lidar com a burocracia acerca do tratamento com remédios experimentais e resolve criar um sistema para proporcionar aos doentes americanos o acesso às novas drogas, o tal Clube de Compras do título.

Preconceituoso e sem maiores preparos para lidar com sua nova realidade, Ron Woodroof é um personagem e tanto, repleto da complexidade que qualquer bom ator sonha, e Matthew McConaughey - que vem há alguns anos tentando ser levado a sério e finalmente conseguiu sua grande chance para isso - desencumbe-se do desafio com louvores, não apenas fisicamente mas também dramaticamente, apesar de ter que lutar contra um roteiro incapaz de explorar a contento todas as possibilidades de sua personalidade conflitante. Nesse ponto, Jared Leto sai-se melhor, já que Rayon, sua personagem, consegue ser um pouco (não muito) melhor desenvolvida, apesar do filme jogar fora a promissora relação entre ele - um jovem travesti que se prostitui e é contaminado pela AIDS - e seu pai - um homem rico e conservador que não aceita seu modo de vida. É de Leto a única cena capaz de ser lembrada futuramente - quando ele conversa consigo mesmo diante de um espelho - e mesmo assim a responsabilidade é muito mais sua do que da direção.

Por fim, "Clube de Compras Dallas" é um típico filme feito para ganhar Oscar. Nesse ponto, não se pode dizer que tenha sido mal-sucedido, já que as vitórias de seus atores já é quase certa. Mas, ao mesmo tempo, desperdiçou uma boa história e bons personagens em um roteiro raso e dinamicamente falho, que encontra espaço até mesmo para uma relação dispersiva entre o protagonista e a médica interpretada pela sempre fraca Jennifer Garner. Uma pena que um potencial tão grande tenha resultado em algo tão banal.

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ÁLBUM DE FAMÍLIA

Posted by Clenio on 15:57 in
Transpor um texto teatral para as telas de cinema não é tarefa das mais fáceis, e até mesmo diretores experientes correm o risco de cair na armadilha da adaptação literal enfadonha - haja visto Roman Polanski, que, mesmo com um elenco brilhante e seu talento inegável, não conseguiu fugir da monotonia com seu "O deus da carnificina". Portanto, não é de estranhar que "Álbum de família", baseado em um espetáculo premiado com o Pulitzer e o Tony, fique tanto a dever em termos de qualidade cinematográfica. Mesmo com um elenco de sonhos - que inclui as indicadas ao Oscar Meryl Streep e Julia Roberts juntas pela primeira vez na tela - e os diálogos vivos e quentes escritos pelo também ator Tracy Letts, falta brilho à direção de John Wells, cujo currículo inclui apenas um outro longa-metragem, o elogiado mas pouco visto "A grande virada" - além de vários episódios de séries televisivas, como "Plantão médico".

Ao contrário de Mike Nichols - que imprimiu personalidade e vivacidade a seus "Quem tem medo de Virginia Woolf?" e "Closer, perto demais", ambos adaptados de sucessos dos palcos - Wells não consegue fazer a plateia esquecer que, por trás da trama repleta de rancor, segredos e ressentimentos criada por Letts existe uma origem teatral bastante óbvia em sua estrutura e desenvolvimento de personagens. Diante dessa falha que compromete o ritmo do filme - uma surpresa, quando se sabe que o diretor vem da tv, onde é mandatório saber contar uma história com começo, meio e fim em menos de sessenta minutos - resta ao público ficar estarrecido (mais uma vez) com o talento superlativo de Streep e surpreendido com a maturidade imposta pela eterna linda mulher Roberts em um papel completamente diferente de tudo que fez até hoje no cinema.

A indicação de Streep ao Oscar de melhor atriz - sua 18ª lembrança por parte da Academia, um recorde impressionante - não representa um comodismo por parte dos votantes como muita gente fez crer na ocasião em que os indicados foram divulgados: seu trabalho com a amarga e cruel Violet Weston, matriarcca de uma família desestruturada que se reúne para o funeral do pai suicida, é brilhante, apesar de um certo maniqueísmo do roteiro que atrapalha até mesmo a empatia do espectador. Cada vez que Violet abre a boca ela solta um veneno, uma agressão, uma absoluta falta de compaixão com quem quer que seja, desde a empregada índia até suas três filhas, a quem trata com desrespeito e quase indiferença. Às três filhas - cada um com uma saudável cota de problemas - sobra apenas encontrar uma maneira de lidar com tanta amargura sem partir para a pancadaria (e nem sempre conseguem fazer isso, como mostra a genial cena do jantar familiar que acaba sendo o clímax do filme, mesmo que aconteça um tanto cedo demais).

Julia Roberts, que concorre ao Oscar de coadjuvante mesmo que sua personagem tenha tanta importância quanto a de Streep, vive Barbara, a filha preferida do pai, que abandonou a vida no interior do Oklahoma para acompanhar o marido (Ewan McGregor), de quem está separada graças a uma infidelidade conjugal - e que tem com a própria filha adolescente (Abigail Breslin) uma relação conflituosa. Juliette Lewis (voltando aos holofotes depois de um sumiço injusto) interpreta Karen, a filha desajustada e volúvel que está noiva de um homem mais velho (Dermot Mulroney) - que não demora a arrastar a asa para a sobrinha da namorada, mesmo sabendo que ela tem apenas 14 anos. E Julianne Nicholson compõe uma Ivy delicada e submissa às idiossincrasias da mãe, que encontra um caminho para ser feliz no amor apenas para vê-lo desmoronar diante de seus olhos. Completando a disfuncional família estão a irmã de Violet, Mattie Fae (Margo Martindale, ótima), seu compreensivo marido (Chris Cooper) e seu filho único, Little Charles (Benedict Cumberbatch), a quem ela trata com total desprezo.

O elenco de "Álbum de família" é espetacular, sem um único elo fraco. O texto é forte e devidamente respeitado (talvez até demais). A trama tem surpresas e reviravoltas em número suficiente para prender a atenção e  a bela canção de Kings of Leon que fecha o filme traduz com perfeição o clima da obra. Mas, apesar de tudo isso, como cinema é insatisfatório. É quase um teatro filmado. Quem não se importa com isso com certeza terá duas horas de grandes interpretações. Não é pouco, mas poderia ser ainda mais.

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O LOBO DE WALL STREET

Posted by Clenio on 21:06 in
Pode causar um certo estranhamento o fato de "O lobo de Wall Street", novo filme de Martin Scorsese, ser tachado de comédia por parte da crítica - e até dos votantes do Golden Globe, que deram a Leonardo DiCaprio uma estatueta na categoria. No entanto, no fundo da empolgante história real que concorre a cinco Oscar, incluindo de melhor filme, está realmente uma comédia. Histérica, de humor negro e profundamente crítica, mas uma comédia. Do ponto de vista brilhante do cineasta que acostumou seu público a petardos cinematográficos do quilate de "Taxi driver" e "Os bons companheiros", mas ainda assim uma comédia. E se talvez seja difícil compreender esse raciocínio um tanto tortuoso diante dos excessos - de sexo, de drogas e de violência moral - de suas três horas de projeção, basta prestar atenção na ironia da edição magistral  injustamente esquecida pelo Oscar, na encenação propositalmente muitos tons acima do normal e da forma como o assunto, normalmente levado a sério pelo cinema, é totalmente desconstruído pelo roteiro dinâmico de Terence Winter: pode não ser uma comédia óbvia, mas é, sem sombra de dúvidas, um filme muito, muito engraçado.

Posto lado a lado com o sisudo "Wall Street, poder e cobiça", que Oliver Stone realizou em 1987, o novo trabalho de Scorsese mostra sua verdadeira face: é um deboche disfarçado de crítica, uma crítica banhada em sarcasmo e um retrato psicodélico das entranhas do mundo quase surreal dos negócios financeiros, visto através dos olhos de um de seus integrantes mais bem-sucedidos, vivido aqui com uma verve histriônica nunca antes vista em Leonardo DiCaprio, talvez em seu melhor trabalho sob o comando do cineasta nova-iorquino. Sem falsas amarras, DiCaprio se entrega a um anti-heroi que somente o seu carisma consegue salvar da antipatia da audiência, o corretor da bolsa de valores Jordan Belfort, que, graças a sua inigualável lábia - e alguns desvios éticos, conseguiu amealhar fortunas no mercado financeiro americano do final dos anos 80. Constantemente com a consciência alterada - por drogas ou por sua própria ambição e falta de limites morais - Belfort conduz o público a um espetáculo de tirar o fôlego, repleto de sequências filmadas com a segurança de que somente um profissional do nível de Scorsese é capaz.

Somente Scorsese consegue, por exemplo, utilizar trechos de um desenho animado de Popeye para ilustrar a overdose de anfetaminas do protagonista e de seu sócio (Jonah Hill, excelente no timing cômico e responsável por alguns dos melhores momentos do filme) sem soar bobo e filmar longos discursos messiânicos de Belfort a seus associados sem que eles pareçam iguais - responsabilidade também da habitual colaboradora Thelma Schoonmaker, que mantém a agilidade da trama mesmo quando o relógio chega cravado aos 180 minutos na tela, quase todos essenciais à compreensão e desenvolvimento da história, narrada com precisão cirúrgica e que ainda conta, como uma espécie de piada interna, com as presenças luxuosas de três cineastas que esporadicamente fazem as vezes de atores: Jon Favreau, Spike Jonze e Rob Reiner, em uma atuação hilariante como o pai do personagem de DiCaprio, que tenta por um pouco de ordem no caos da vida do filho.

E se Leonardo DiCaprio deita e rola no papel principal, seus coadjuvantes não ficam atrás. Jonah Hill - que surpreendeu com a indicação ao Oscar de coadjuvante - faz com ele um par perfeito, em cenas que caminham na tênue linha do pastelão mas escapam dele majestosamente. E Matthew McConaughey - maior rival de DiCaprio na disputa pela estatueta de melhor ator deste ano - acrescenta mais uma grande atuação à lista de trabalhos que marcam sua ressurreição no mercado hollywoodiano nos últimos anos como um espécie de mentor do protagonista - um Gordon Geko da nova geração, com o mesmo cinismo do clássico personagem de Michael Douglas, mas aditivado com cocaína.

Um dos mais sensacionais filmes da temporada - e um clássico instantâneo de Martin Scorsese - "O lobo de Wall Street" não deve sagrar-se vencedor do Oscar. É corajoso demais, ousado demais e bom demais para ser reconhecido como o melhor filme do ano por uma Academia (ainda) muito conservadora.

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TRAPAÇA

Posted by Clenio on 23:22 in
Em 1999 o cineasta David O. Russell realizou um dos primeiros filmes americanos a tratar sobre a guerra no Golfo, a comédia de ação "Três reis", que demonstrava um senso de humor afiado e uma criatividade que seria ainda mais perceptível na bizarra comédia "Huckabees, a vida é uma comédia", lançado cinco anos depois. Depois disso, de uma hora pra outra, o nova-iorquino de 55 anos tornou-se um queridinho absoluto da Academia. "O vencedor", de 2010, deu a Christian Bale e Melissa Leo os Oscar de coadjuvante, além de ter indicado Amy Adams na mesma categoria. "O lado bom da vida", de 1012, premiou Jennifer Lawrence como melhor atriz - e indicou também Bradley Cooper a melhor ator e Robert DeNiro e Jackie Weaver a coadjuvantes. Ambos concorreram aos Oscar de filme, direção e roteiro. Comprovando sua fase sem igual, Russell repetiu o feito este ano: "Trapaça", seu novo trabalho, concorre a dez estatuetas, incluindo as cinco principais - além de, como aconteceu ano passado, ter todos os seus quatro atores principais entre os finalistas nas categorias de interpretação. Isso tudo - mais o Golden Globe de melhor comédia/musical e o prêmio de melhor filme pela Associação de Críticos de Nova York - levanta uma importante questão: sua nova obra é assim tão boa?

Depende. Tendo "O vencedor" e "O lado bom da vida" - filmes apenas corretos exageradamente incensados - como base de comparação, "Trapaça" é um salto de qualidade na carreira de Russell, tanto em termos narrativos quanto de direção de atores. Mas, percebendo claramente que o cineasta bebe direto na fonte do cinema enérgico e marginal de Martin Scorsese, não deixa de ser estranho vê-lo disputar o Oscar com o próprio mestre - e ter muito mais chances de sair-se vitorioso do que ele. "O lobo de Wall Street", do bom e velho Marty, também está no páreo do Oscar, mas é sua versão light - estrelada por Christian Bale e Amy Adams - que parece estar na dianteira pelos prêmios.

A trama de "Trapaça" é complexa como convém a um filme que trata de golpes financeiros, mas narrada de forma convencional, sem maiores arroubos de criatividade, preocupando-se mais com as relações interpessoais de seus personagens, interpretados por atores em momentos de rara inspiração. Christian Bale está mais uma vez irreconhecível como Irving Rosenfeld, um golpista que, em 1977, é forçado a trabalhar ao lado do agente do FBI Ritchie DiMaso (Bradley Cooper) como forma de ter seus crimes perdoados. Casado com a perua Rosalyn (Jennifer Lawrence) - acostumada com os luxos que uma vida de crime proporciona - Rosenfeld conta com a ajuda de sua amante, Sydney (Amy Adams), para tentar jogar o político Carmine Polito (Jeremy Renner) atrás das grades. Logicamente nem tudo sai como o planejado, o que leva todos a situações inesperadas - e a um final inteligente o bastante para justificar os momentos menos ágeis do roteiro.

A profusão de indicações de "Trapaça" tem mais a ver com os valores de produção - por se passar no final da década de 70 os figurinos e os cenários mereceram cuidado especial - e o elenco do que exatamente por suas qualidades inovadoras. Parte de um subgênero do cinema hollywoodiano - os filmes de roubo - a obra de Russell segue sua cartilha à risca, criando personagens simpáticos em sua marginalidade e uma trama rocambolesca na medida exata para prender a atenção e não confundir o público. Se Amy Adams utiliza a sensualidade pela primeira vez em sua carreira em um interpretação impecável e Bale mais uma vez mostra que é um ator extraordinário, os coadjuvantes Bradley Cooper e Jennifer Lawrence (protagonistas do filme anterior do diretor) não fazem feio, ainda que a elogiada Lawrence talvez exagere um pouco nas tintas de sua personagem - culpa dela ou da direção?

Em resumo, "Trapaça" é um bom filme, bastante superior às duas últimas obras de seu diretor, mas o excesso de indicações ao Oscar talvez represente mais um exemplo de alucinação coletiva que acomete frequentemente a Academia do que um atestado de suas qualidades.

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CARRIE, A ESTRANHA

Posted by Clenio on 16:41 in
A única vantagem desse desnecessário remake - assim como todos o são - de "Carrie, a estranha" é o fato de sua protagonista, a ótima Chloe Grace Moretz ser a primeira adolescente a representar a personagem criada pelo escritor Stephen King - a mais famosa personificação da heroína das vítimas de bullying, Sissy Spacek, que chegou a ser indicada ao Oscar por seu desempenho, tinha 26 anos quando o filme de Brian de Palma estreou, em 1976. Tirando esse detalhe que lhe dá um mínimo de veracidade, essa nova versão, dirigida por Kimberly Peirce, fracassa em seu principal objetivo: é um filme de suspense sem suspense.

Moretz - que chamou a atenção em outro remake, do terror escandinavo "Deixe ela entrar" e pela impagável Hit-Girl dos dois "Kick-ass" - faz o que pode na pele da massacrada Carrie, filha de uma religiosa fanática (vivida com a competência habitual por Julianne Moore) que, depois de anos estudando em casa e afastada das "tentações da carne", precisa lidar com a crueldade de suas colegas de escola quando tem a sua primeira menstruação diante de todas elas. Humilhada por causa de sua timidez e falta de sociabilidade - além de não vestir-se de acordo com as regras impostas pelas patricinhas com quem estuda - ela vê uma luz no fim do túnel de seu sofrimento quando o disputado Tommy Ross (Ansel Elgort) a convida para o baile de formatura, incentivado pela namorada, Sue (Gabriella Wilde). O que poderia ser o melhor momento de sua vida, porém, torna-se um pesadelo, que a obriga a lidar com seus recém-descobertos poderes telecinéticos.

Apostando em uma profusão de efeitos especiais que tiraram totalmente o charme sutil da obra cinematográfica original, o filme de Peirce peca em exagerar em praticamente tudo, pouco deixando para a imaginação - talvez subestimando a inteligência da audiência ou talvez sabendo que, para seu público-alvo, isso é um detalhe insignificante quando existe um banho de sangue. E sangue é o que não falta, para alegria dos sádicos de plantão. Infelizmente, ele não é o suficiente para justificar um remake que nada acrescenta ao original. Peirce - que debutou em Hollywood no poderoso "Meninos não choram" e dirigiu o pouco visto mas muito interessante "Stop-loss, a lei da guerra", com Channing Tatum e Joseph Gordon-Levitt - parece ter perdido a coragem demonstrada em seu filme de estreia, realizando uma obra engessada ao respeito exagerado ao livro de King. Pode agradar aos fãs do gênero, mas não é bom cinema.

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