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A NOITE DO MEU BEM: A HISTÓRIA E AS HISTÓRIAS DO SAMBA-CANÇÃO
Posted by Clenio
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21:21
in
LITERATURA
Em "Chega de saudade" e "A onda que se ergueu do mar", ele narrou o
surgimento, o auge e a influência da Bossa Nova na música brasileira. Em
"Ela é carioca", criou uma mini-enciclopédia sobre as pessoas, lugares e
sentimentos que fizeram de Ipanema um cartão-postal imortal do Rio de
Janeiro. Em "Um filme é para sempre" falou (obviamente) de cinema, e em
"O leitor apaixonado" (claro), sobre literatura. "Saudades do século XX"
era um apanho de pequenas biografias de gente que fez do mundo um lugar
menos sofrido entre 1901 e 2000 (entre eles, Billy Wilder, Hitchcock,
Billie Holliday, Raymond Chandler e Humphrey Bogart). Em "O anjo
pornográfico", "Estrela solitária" e "Carmen" deu a palavra final sobre
as vidas de Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda,
respectivamente. Agora, Ruy Castro - um dos autores mais confiáveis do
país - apresenta ao leitor um apanhado geral (e por vezes bem detalhado)
do universo do samba-canção. Em "A noite do meu bem: a história e as
histórias do samba-canção" (Ed. Companhia das Letras) o jornalista
carioca mais uma vez oferece ao público um trabalho digno de figurar em
qualquer biblioteca de bom-gosto. Mantendo seu consagrado estilo - uma
prosa leve e bem-humorada e uma série de informações ricas em pormenores
- Castro brinda os fãs do gênero musical (e até aqueles que não ligam o
nome à pessoa) com uma obra já destinada à antológica.
Começando sua história com a decisão do Presidente Dutra de fechar os cassinos, em 1946 - fato decisivo para que uma nova e longeva febre se instaurasse na noite carioca, as boates - e estendendo-a até os anos 60, quando a ditadura militar legou sua única benesse (a formação de músicos dispostos a pregar em sua arte gana contra a repressão) e outros ambientes musicais permitiram o nascimento de outros estilos musicais (entre eles a Bossa Nova, que, ao contrário do se que pode imaginar, muito bebeu na fonte dos sambas-canção, já que Vinícius, Tom Jobim e Baden Powell também assinaram vários títulos do gênero), Ruy Castro caminha lentamente pelo ambiente de luxo e glamour das casas noturnas frequentadas pela melhor sociedade do Brasil, ciceroneando o leitor por entre a fumaça de cigarros importados, o ruído das pedras de gelo nos copos de uísque e perfumes importados - e não deixando de ouvir as últimas novidades sobre o governo ainda sediado na Cidade Maravilhosa e deliciar-se com um menu de causar inveja a casas de Nova York e Paris, mérito de funcionários que, sob a ótica do autor, são personagens de ficção que realmente existiram (e muitas vezes comandaram a diversão do beautiful people, na época singelamente chamada de café-society).
Enquanto descreve os detalhes de boates que entraram para o imaginário popular do Rio de Janeiro e do Brasil (a Vogue, destruída em um trágico incêndio em agosto de 1955, o Sacha's, o Night and Day, o Drink, o Cangaceiro e vários outros), Ruy Castro não se furta a povoá-las com nomes que, das duas, uma: o leitor já ouviu falar mas não sabe exatamente quem são (Dolores e Jorginho Guinle, Ibrahim Sued, Jacinto de Thormes, Tereza Souza Campos) ou conhece a obra mas desconhece detalhes sobre suas vidas pessoais (e aí a lista vai de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins a Dolores Duran, passando por Nelson Gonçalves, Maysa, Angela Maria, Cauby Peixoto, Dóris Monteiro, Nora Ney, Elizabeth Cardoso e um vasto etc). Mostrando como os dramas pessoais da maioria desses artistas foram combustível mais do que suficiente para que eles se tornassem os maiorais em seu metier, o autor consegue mais uma vez fundir uma gama imensa de informações preciosas com uma crônica brilhante de um tempo e um estado de espírito únicos. Em quase 500 páginas - que parecem pouco quando chegam ao fim - ele esmiúça parcerias (musicais ou sentimentais), aventuras e desventuras (sociais ou políticas) e picuinhas (profissionais ou pessoais) com a visão de um antropólogo que nutre um carinho claramente perceptível pelo objeto de seu estudo. Deslumbrado pelo que descreve - e mesmo assim crítico quando necessário - Castro não hesita em trazer à tona nomes que o tempo não presenteou com a imortalidade (Mary Gonçalves, Dora Lopes, Agostinho dos Santos) para que sejam devidamente reconhecidos como pedras fundamentais de um gênero que ainda hoje influencia a música popular brasileira (Chico Buarque, Angela Roro, Ivan Lins e Aldir Blanc tem algumas obras relativamente recentes que são puramente samba-canções) e que revelou alguns dos mais intensos artistas que o país já teve (além dos já citados, vale destacar a importância de Silvio Caldas, Dorival Caymmi, Dick Farney, Lupicínio Rodrigues e Lucio Alves).
Viajando também pelos bastidores do poder - Getúlio Vargas, JK, Jango, Jânio Quadros passeiam pelas páginas do livro sem pedir licença - e da mídia - Assis Chateaubriand, Samuel Wainer, Carlos Lacerda e os programas de rádio de suma importância para o desenvolvimento musical da época - "A noite do meu bem" não é apenas uma obra sobre música. É um brilhante retrato de uma época e de um Brasil que - dividido entre os elegantes frequentadores das boates e os menos afortunados ouvintes de rádio - tinha em comum a paixão pela música e pela poesia, diferente do que acontece nos dias de hoje, com pagodes, funks e outras atrocidades sendo despejadas sem piedade no ouvido do consumidor. O romantismo com que Ruy Castro banha seu livro é o romantismo das salas esfumaçadas que cheiravam a bebida, dor de cotovelo, sedução explícita e manifestações nada sutis de poder e luxo. Mergulhar em sua narrativa é inevitável, apaixonar-se por ela idem. É uma pena, porém, que, assim como esse tempo passou - ainda que deixando um belo legado - o livro também acaba. Resta ouvir as músicas-personagens (segundo o livro, 90% delas encontram-se disponíveis na Internet) e viajar ao tempo em que ouvir Dalva de Oliveira cantando coisas como "O peixe é pro fundo das redes, segredo é pra quatro paredes. Primeiro é preciso julgar pra depois condenar..." não era cafona: era o máximo da sofisticação musical. Bons tempos!
Começando sua história com a decisão do Presidente Dutra de fechar os cassinos, em 1946 - fato decisivo para que uma nova e longeva febre se instaurasse na noite carioca, as boates - e estendendo-a até os anos 60, quando a ditadura militar legou sua única benesse (a formação de músicos dispostos a pregar em sua arte gana contra a repressão) e outros ambientes musicais permitiram o nascimento de outros estilos musicais (entre eles a Bossa Nova, que, ao contrário do se que pode imaginar, muito bebeu na fonte dos sambas-canção, já que Vinícius, Tom Jobim e Baden Powell também assinaram vários títulos do gênero), Ruy Castro caminha lentamente pelo ambiente de luxo e glamour das casas noturnas frequentadas pela melhor sociedade do Brasil, ciceroneando o leitor por entre a fumaça de cigarros importados, o ruído das pedras de gelo nos copos de uísque e perfumes importados - e não deixando de ouvir as últimas novidades sobre o governo ainda sediado na Cidade Maravilhosa e deliciar-se com um menu de causar inveja a casas de Nova York e Paris, mérito de funcionários que, sob a ótica do autor, são personagens de ficção que realmente existiram (e muitas vezes comandaram a diversão do beautiful people, na época singelamente chamada de café-society).
Enquanto descreve os detalhes de boates que entraram para o imaginário popular do Rio de Janeiro e do Brasil (a Vogue, destruída em um trágico incêndio em agosto de 1955, o Sacha's, o Night and Day, o Drink, o Cangaceiro e vários outros), Ruy Castro não se furta a povoá-las com nomes que, das duas, uma: o leitor já ouviu falar mas não sabe exatamente quem são (Dolores e Jorginho Guinle, Ibrahim Sued, Jacinto de Thormes, Tereza Souza Campos) ou conhece a obra mas desconhece detalhes sobre suas vidas pessoais (e aí a lista vai de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins a Dolores Duran, passando por Nelson Gonçalves, Maysa, Angela Maria, Cauby Peixoto, Dóris Monteiro, Nora Ney, Elizabeth Cardoso e um vasto etc). Mostrando como os dramas pessoais da maioria desses artistas foram combustível mais do que suficiente para que eles se tornassem os maiorais em seu metier, o autor consegue mais uma vez fundir uma gama imensa de informações preciosas com uma crônica brilhante de um tempo e um estado de espírito únicos. Em quase 500 páginas - que parecem pouco quando chegam ao fim - ele esmiúça parcerias (musicais ou sentimentais), aventuras e desventuras (sociais ou políticas) e picuinhas (profissionais ou pessoais) com a visão de um antropólogo que nutre um carinho claramente perceptível pelo objeto de seu estudo. Deslumbrado pelo que descreve - e mesmo assim crítico quando necessário - Castro não hesita em trazer à tona nomes que o tempo não presenteou com a imortalidade (Mary Gonçalves, Dora Lopes, Agostinho dos Santos) para que sejam devidamente reconhecidos como pedras fundamentais de um gênero que ainda hoje influencia a música popular brasileira (Chico Buarque, Angela Roro, Ivan Lins e Aldir Blanc tem algumas obras relativamente recentes que são puramente samba-canções) e que revelou alguns dos mais intensos artistas que o país já teve (além dos já citados, vale destacar a importância de Silvio Caldas, Dorival Caymmi, Dick Farney, Lupicínio Rodrigues e Lucio Alves).
Viajando também pelos bastidores do poder - Getúlio Vargas, JK, Jango, Jânio Quadros passeiam pelas páginas do livro sem pedir licença - e da mídia - Assis Chateaubriand, Samuel Wainer, Carlos Lacerda e os programas de rádio de suma importância para o desenvolvimento musical da época - "A noite do meu bem" não é apenas uma obra sobre música. É um brilhante retrato de uma época e de um Brasil que - dividido entre os elegantes frequentadores das boates e os menos afortunados ouvintes de rádio - tinha em comum a paixão pela música e pela poesia, diferente do que acontece nos dias de hoje, com pagodes, funks e outras atrocidades sendo despejadas sem piedade no ouvido do consumidor. O romantismo com que Ruy Castro banha seu livro é o romantismo das salas esfumaçadas que cheiravam a bebida, dor de cotovelo, sedução explícita e manifestações nada sutis de poder e luxo. Mergulhar em sua narrativa é inevitável, apaixonar-se por ela idem. É uma pena, porém, que, assim como esse tempo passou - ainda que deixando um belo legado - o livro também acaba. Resta ouvir as músicas-personagens (segundo o livro, 90% delas encontram-se disponíveis na Internet) e viajar ao tempo em que ouvir Dalva de Oliveira cantando coisas como "O peixe é pro fundo das redes, segredo é pra quatro paredes. Primeiro é preciso julgar pra depois condenar..." não era cafona: era o máximo da sofisticação musical. Bons tempos!