NÃO ME ABANDONE JAMAIS
Autor do livro que deu origem ao filme "Vestígios do dia", estrelado por Anthony Hopkins e Emma Thompson, Kazuo Ishiguro tem uma prosa lenta e detalhista que provavelmente dificultou o trabalho do roteirista Alex Garland - que trabalhou com o cineasta Danny Boyle em duas ocasiões ("A praia" e "Extermínio") - em contar a história sem perder-se em elocubrações psicológicas mais densas do que um produto cinematográfico exige. A trama se passa em três tempos distintos, mas, para alegria daqueles que gostam de uma narrativa linear e não repleta de idas e voltas, eles são bem divididos e explicitados por letreiros explicativos. Tudo começa quando a narradora, Kathy (Carey Mulligan) ainda é uma pré-adolescente, assim como seus dois melhores amigos, Ruth (Keira Knightley) e Tommy (Andrew Garfield), um menino dado a ataques de fúria por quem ela nutre uma avassaladora paixão juvenil. Os três são alunos de uma tradicional escola inglesa que tem como único objetivo educar crianças que, ao atingirem determinada idade, doarão seus órgãos vitais para clientes ricos. Alguns anos mais tarde os amigos voltam a encontrar-se, quando Tommy e Ruth estão vivendo um romance enquanto aguardam a hora em que serão obrigados a cumprir seus destinos. O ato final acontece quase uma década depois: trabalhando como "cuidadora" (tomando conta dos doadores que já passaram por mais de uma cirurgia), Kathy reencontra Ruth à beira da morte e, ao saber que Tommy também está em vias de passar por sua terceira doação, resolve lutar por seu amor ao descobrir uma brecha no sistema de doações.
A delicadeza com que Romanek trata da história de amor entre Kathy e Tommy é a maior qualidade de "Não me abandone jamais", que evita de entrar no melodrama barato que outro cineasta menos hábil poderia escolher para trilhar. A trilha sonora discreta de Rachel Portman colabora para o clima melancólico da história narrada, pontuando cenas de uma beleza ímpar, tanto visual quanto emocionalmente. A discussão ético/filosófica sobre a doação de órgãos, apesar de não tornar-se o centro da narrativa é forte o suficiente para martelar na mente do público mesmo após os créditos finais, que certamente convidam os mais sensíveis às lágrimas. Mas nada no filme é melhor do que seu elenco, em especial a dupla Carey Mulligan/Andrew Garfield.
Se Keira Knightley não faz nada além do que já estamos acostumados a ver - ou seja, não ajuda nem atrapalha - seus colegas de cena não são nunca menos do que espetaculares. A pequena Isobel Meikle-Small faz um trabalho excelente como a jovem Kathy e é uma bela introdução à introspectiva atuação de Carey Mulligan, demonstrando ser uma atriz com um futuro brilhante, ao equilibrar com maturidade todos os sentimentos contraditórios de sua personagem. E Andrew Garfield está fenomenal como Tommy, o sensível pivô de um triângulo amoroso triste e fadado à infelicidade. Seus ataques de fúria, seus momentos de galã romântico e até mesmo sua delicadeza física são interpretados com uma entrega tão grande que o torna irresistível à plateia. Totalmente diferente de seu Eduardo Saverin de "A rede social", Garfield cala a boca de todos aqueles ainda incrédulos em seu talento para encarnar o novo Homem-aranha. É, sem dúvida, mais uma omissão imperdoável da Academia.
Aliás, a Academia foi absolutamente obtusa em ignorar o filme de Mark Romanek, que merecia, no mínimo, lembrança para seus protagonistas e seu belo roteiro - isso sem falar na trilha sonora e na fotografia discreta mas eficaz de Adam Kimmell. Mas a solução é deixar de lado as injustiças do Oscar e se extasiar com um dos melhores filmes do ano passado. "Não me abandone jamais" é uma grata surpresa!
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